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A precisão musical de duas pinturas de Caravaggio

"O repouso na fuga para o Egito". Quadro de Caravaggio que se encontra na Galerai Doria Pamphilj em Roma (Foto: )

Caravaggio e a música: precisão documental

Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) foi um notável pintor ao qual normalmente é atribuído uma transformação estilística que levou a pintura dos parâmetros renascentistas a um enfoque do período seguinte, o barroco. Viveu no sul da Itália, entre Roma, Nápoles, a Sicília e Malta. Homem violento (foi condenado por assassinato), excêntrico (tinha múltiplas preferências sexuais) e temperamental, é também responsável por valiosas informações sobre a produção musical de sua época graças a um esmero refinado na reprodução de algumas partituras em seus quadros, e uma detalhada reprodução pictórica dos instrumentos utilizados na sua época. A escolha de certas obras musicais completa o tortuoso caminho da explicação psicológica das cenas que retrata.

Um moteto em meio a uma cena bíblica

Detalhe da pintura de Caravaggio “O repouso na fuga para o Egito”. O moteto de Noel Bauldeweyn fielmente transcrito

Em 1597, ao que parece em Roma, Caravaggio, então com 26 anos de idade, pinta o quadro que ele batizou apenas de “Repouso”, mas que é conhecido como “O repouso durante a fuga para o Egito”. Esta cena, extraída do Novo Testamento, fala de quando José e Maria, avisados por um Anjo, fogem das ordens exterminadoras de Herodes, que resolveu ordenar à morte todos os recém-nascidos, pois um deles, através de uma previsão, poderia ser um novo Rei dos judeus que lhe usurparia o trono. O quadro de Caravaggio retrata uma Virgem Maria extenuada que inclina sua cabeça e dorme sobre o menino Jesus. José, com o rosto enrugado, é então visitado por um Anjo, que toca um violino. A esta cena assiste, com um belíssimo e tocante olhar, um asno, que também parece se acalmar diante da arte musical. Mas que música é esta? Sim, Caravaggio, entre suas muitas habilidades, copia de forma exemplar a parte de soprano (não existia partitura geral na época) de um moteto do compositor franco-flamengo Noel Bauldeweyn (1580-1513). Conhecer o texto deste moteto, texto este extraído do Cântico dos cânticos do antigo testamento, é extremamente revelador. As palavras, em uma tradução para o português, dizem o seguinte:

Quão formosa, e quão aprazível és,

ó amor em delícias.

A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios são semelhantes aos cachos de uvas.

Dizia eu: Subirei à palmeira, e pegarei em seus ramos; e então os teus seios serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.

O que percebemos é que o pintor humaniza os personagens bíblicos: José amava e desejava Maria como um homem normal ama e deseja sua esposa. Maria, cansada da fuga, repousa pesadamente. Diferente das virgens sorridentes e calmas retratadas por outros pintores, a de Caravaggio, exausta, cai num sono profundo. Num jogo de claro e escuro quem tem a luz mais intensa é o Anjo, Maria e o menino Jesus. José e o asno estão fora dos intentos divinos. A música apazigua e iguala todos na cena. Caravaggio não copia as palavras, mas as notas musicais são claramente do moteto “Quam pulchra est” de Noel Bauldeweyn. Para se ter uma ideia do que o anjo toca podemos ouvir aqui este moteto:

“O alaudista”: um jovem músico junto a madrigais profanos

O tocador de alaúde de Caravaggio na versão de São Petersburgo

 

O quadro “O alaudista” de Caravaggio (1596) existe em três versões, muito parecidas mas cujas referências musicais são levemente diferentes em cada uma das versões. Na versão que se encontra no Museu Hermitage em São Petersburgo vê-se claramente uma referência a um compositor franco-flamengo muito apreciado nos círculos intelectuais de Roma na época: Orlando de Lassus (1530-1593). Lembro que ser franco-flamengo era marca de qualidade entre os músicos do final da renascença. Os especialistas acreditam que o aparente “B” na realidade é uma versão rebuscada de um “L”.

Por isso na parte baixa do quadro deduz-se que há uma coletânea de obras do compositor. Em uma das versões fica clara a cópia de madrigais amorosos de Jaques Arcadelt (1507-1568) e de Jacquet de Berchem (1505-1567), dois compositores também franco-flamengos. Diferente do clima bíblico do primeiro quadro que comentei, temos aqui uma cena carregada de voluptuosidade. O jovem músico na realidade é Mario Minniti (1577-1640), modelo e ao que parece amante do pintor. O que importa, do ponto de vista musical, é conhecer, além dos instrumentos musicais retratados, o som das obras citadas nas diversas versões deste quadro. Vamos ouvir algumas delas:

O madrigal de Berchen

O madrigal de Jaques Arcadelt

O ineditismo de Caravaggio

Diversos compositores basearam suas obras em quadros. É o caso dos “Noturnos” para orquestra de Debussy que se inspirou em quadros de Whistler ou Respighi que descreve musicalmente quadros de Botticelli. Mas o que vemos nestes dois quadros de Caravaggio é o contrário: a música é utilizada para criar a atmosfera e rebuscar a psicologia da cena. Sem dúvida mais uma das incontáveis genialidades deste que foi um dos maiores pintores da história. Este texto que escrevi foi inspirado pela maravilhosa obra de Philippe Beaussant (1930 – 2016), novelista e musicólogo francês, sobretudo pelo livro “Passagens, da Renascença para o barroco –  Passages, de la Renaissance au baroque –  (2008 Fayard). Não concordo com tudo o que ele escreve, mas é um livro marcante, uma leitura obrigatória.

 

 

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