No dia 14 de julho deste ano, no mais importante festival de música clássica do mundo, o Proms em Londres, houve um concerto absolutamente marcante. Nesta noite a orquestra de instrumentos de época “Les Siécles” dirigida por François-Xavier Roth apresentou Le Sacre du primtemps, A sagração da primavera de Igor Stravinsky com instrumentos da época e do país da estréia. François-Xavier Roth é um jovem maestro francês que se especializou em música contemporânea e em resgates de sonoridades instrumentais barrocas, clássicas e românticas.Para que o trabalho de restauro fosse bem completo resgataram a primeira redação desta obra chave do século XX. Quem conhece bem a obra notará diversas coisas diferentes nas dinâmicas, na orquestração, em algumas harmonias e alguns ritmos. Mas o mais importante mesmo é o som fantástico de instrumentos franceses, que eram bem diferentes dos instrumentos de orquestra utilizados no resto do mundo até 1970. Esta maravilha, tão recente, está disponível no youtube num vídeo de alta qualidade técnica que ainda inclui duas entrevistas extremamente interessantes, com duas bailarinas que dançaram na conturbada estréia em maio de 1913: Lydia Sokolova, a primeira intérprete do papel principal, a eleita, fala numa entrevista de 1965 de suas lembranças e impressões, e Marie Romberg que defende até o fim a maravilhosa coreografia de Nijinsky.
Instrumentos franceses
O que mais impressiona nesta execução é o som dos instrumentos de sopros. São utilizados fagotes franceses, coisa muito rara hoje em dia. A última orquestra a defender a existência deste tipo de instrumento foi a Orquestra de Paris, que fez a substituição pelo fagote alemão por volta de 1975. Nosso maior fagotista, Noel Devos, foi um grande defensor do fagote francês, e dizia com toda a razão que gênios como Ravel, Debussy,Stravinsky e mesmo Villa-Lobos tinham imaginado o som de um fagote desta maneira. O início da Sagração da Primavera com um fagote francês é o sinal que iremos escutar sons nunca antes ouvidos. As trompas usadas na França até 1960 eram bem diferentes das trompas alemãs ou americanas. Usavam pistões e tinham um som mais próximo dos instrumentos de madeira. Uma beleza ouvir a fusão destas trompas com os fagotes e as cordas. Os trompetes são diferentes também, e o mesmo se passa com os oboés e os clarinetes.
Registros históricos
Existem gravações históricas, sobretudo as regidas por Désiré-Émile Inghelbrecht, amigo de Debussy e que faleceu em 1965, de grandes obras orquestrais francesas. Ao ouvirmos seus registros de La mer e Images de Debussy ou Daphnis et Chloé de Ravel percebemos que há um abismo de distância entre o que os compositores pensaram e o que nos acostumamos a ouvir. Mas nunca foi feito o mesmo com obras de Igor Stravinsky. E ele próprio repudiava a primeira redação de seu mais famoso Ballet e o único maestro que gravou esta versão original foi René Leibowitz, mas com uma orquestra inglesa. A orquestra belga Anima Eterna dirigida por Jos van Immerseel tem apresentado obras de Debussy e Ravel com instrumentos de época, mas o que aconteceu no Proms deste ano é algo inédito.
Lista das diferenças entre a versão definitiva e a versão ouvida em maio de 1913
As diferenças são mínimas, bem menores do que o compositor fez posteriormente em outras obras como O pássaro de fogo e Petrushka. Mas tratando-se de uma obra tão importante vou enumerar as diferenças que percebi:
1- O acorde antes da “Dança dos adolescentes” é diferente e acentuado (7 depois do número de ensaio 12).
2- Na dança dos adolescentes há um trecho em que as cordas tocam em piano ao invés de foste. Isto dá um efeito bem diferente (entre o número de ensaio 19 e 22).
3 – Pouco antes do “Jogo das cidades rivais” no segundo compasso de 55 há uma cesura. Isto leva a uma modificação rítmica importante.
4- O acorde antes da Dança da terra ( um antes de numero de ensaio 72) está bem modificado.
5- Na última seção, a Dança sagrada existem muitas diferenças, sendo que as mais importantes são a troca de arco para pizzicato nas cordas no numero de ensaio 186.
6- O acorde final é acompanhado de diversos instrumentos de percussão: reco-reco (que ele chama de güiro) e pratos a dois. Na versão definitiva ele manteve só o tímpano e o bombo.
Vídeo imperdível
Considero algo obrigatório este vídeo, acessível no youtube, para todos que apreciam esta obra prima. Pelas entrevistas com as bailarinas que atuaram na estreia, pelas sonoridades dos instrumentos da época da composição e pela excelente filmagem temos aqui um grande acréscimo às comemorações do centenário da estréia desta obra prima.
Explicações dos instrumentistas ( em francês)