Um legado inestimável
Escritas entre 1799 e 1824, as 9 Sinfonias de Beethoven permanecem como o ciclo sinfônico mais coeso, importante e influente de toda a história da música. São obras diferentes, mas todas com o mesmo detectável estilo de um dos maiores criadores musicais que se tem notícia. Em dois séculos elas foram executadas das mais variadas formas, com sua orquestração alterada, com suas repetições ignoradas, com instrumentos de época, com edições carregadas de erros ou meticulosamente corrigidas. As modas e os possíveis deslizes passam, mas as Sinfonias permanecem sem o menor sinal de envelhecimento. Cada uma tem um valor inestimável. O que dizer de cada uma delas?
A mais surpreendente: Sinfonia Nº 1 em dó maior (1799-1800)
Beethoven, depois de viver quase uma década em Viena, se arriscou de entrar na seara dominada por Mozart e Haydn (ainda vivo, com o qual teve aulas).
Ao escrever sua primeira sinfonia demonstra a força e originalidade de seu temperamento artístico. Na introdução lenta, inspirada nas introduções lentas de Haydn, nos confunde começando não em dó maior, a tonalidade da sinfonia, mas em fá maior. Em diversas aspectos demonstra que não era apenas um continuador, mas um transformador: poliritmia no segundo movimento, pela primeira vez um Scherzo no terceiro movimento de uma sinfonia (apesar de que, talvez temeroso, tenha batizado como Menuetto, mas é de fato um Scherzo), e um último movimento com seu tema principal sendo, numa introdução, construído nota por nota. Ele venceu o desafio: ao escrever sua primeira sinfonia escreve uma obra que está no mesmo nível de excelência das últimas sinfonias de Mozart e Haydn. Começou sua jornada com o pé direito.
A mais desprezada: Sinfonia Nº 2 em ré maior (1802)
A segunda sinfonia de Beethoven é, injustamente, a mal amada do ciclo. Mesmo um dos mais renomados intérpretes de Beethoven, o maestro alemão Wilhelm Furtwängler (1886-1954),
raramente regeu esta obra. Se a primeira sinfonia rendia uma homenagem a Haydn, esta segunda sinfonia é mozartiana ao extremo. No último movimento há quase uma citação da abertura da ópera “Le nozze di Figaro”, e o tema do Allegro do primeiro movimento nos lembra muito o da abertura de “A flauta mágica”. Uma sinfonia que posso chamar de poderosa, e também preenchida de ousadias. Merece uma maior atenção. Escrita na época em que o compositor caiu em profunda depressão (Testamento de Heiligenstadt) contradiz, por ser tão alegre, os fatos biográficos.
A mais revolucionária: Sinfonia Nº 3 em mi bemol maior (Eroica-1804)
Dois violentos acordes no lugar de uma longa introdução lenta abrem uma obra quase contestadora. Difícil achar uma página tão inovadora na história da música quanto o primeiro movimento da Sinfonia “Eroica” de Beethoven. Em 3/4 por diversas vezes o ritmo é alterado parecendo que a música é em 2/4. Uma quantidade enorme de temas e harmonias e modulações nunca antes vistas, inclusive um “mega” dissonante acorde de sétima maior repetido diversas vezes no meio do movimento. Uma coda quase tão grande quanto a exposição, uma orquestração cheia de toques originais (a única sinfonia que usa três trompas), e um combate violento de ideias nunca antes visto. No mesmo sentido o segundo movimento, a “Marcha fúnebre”, é espantoso pela eloquência e pela ousadia. Sem alcançarem tanta grandiosidade o Scherzo e o Tema com variações final fazem com que tenhamos uma sinfonia que em termos de duração equivale ao dobro de uma de Haydn. Aliás este não ficou até o fim na estreia da obra. Imagino o que o velho mestre deve ter pensado daquele acorde dissonante…
Escrita a princípio como uma homenagem a Napoleão Bonaparte, visto por Beethoven anteriormente como um idealista e que se revelou um tirano, revela a simpatia que o autor tinha pelos ideais da Revolução Francesa.
A mais sutil: Sinfonia Nº 4 em si bemol maior (1806)
Depois da revolucionária “Sinfonia Eroica” Beethoven nos brinda com uma sinfonia mais curta, mais sutil e mais refinada, mas nem por isso menos inovadora. A misteriosa introdução lenta, em todo o tempo em pianíssimo e em tom menor, nos leva a um Allegro que é a própria expressão de amor à vida. A melodia de infinita beleza do segundo movimento, a graça do Scherzo e o virtuosismo do “Moto perpetuo” do último movimento nos envolve numa obra completamente afastada dos conflitos da sinfonia que a precede. A quarta sinfonia de Beethoven, por sua sutileza, nos coloca em “estado de graça”
A mais conhecida: Sinfonia Nº 5 em dó menor (1808)
O primeiro motivo da quinta sinfonia de Beethoven é uma das duas ou três ideias musicais mais conhecidas no mundo. Desde comerciais de barbeadores até o suspense reportado à música em inúmeros lugares a “Quinta de Beethoven” merece a sua fama. O ritmo das quatro notas iniciais estará presente em toda a obra, em todos os movimentos. Da sombria tonalidade de dó menor (a primeira sinfonia em tom menor do autor) para o triunfo da brilhante tonalidade de dó maior do último movimento. Nos três primeiros movimentos existem tentativas vãs de fixar o tom de dó maior, mas é no final, com uma orquestra reforçada por trombones, piccolo e contra-fagote, que esta vitória da luz sobre as trevas ganha caráter definitivo. Estrutura sui-generis foi imitada diversas vezes como na Sinfonia Nº 5 de Tchaikovsky, na Nº1 de Brahms ,na Nº2 de Mahler e mesmo na última sinfonia do próprio Beethoven. Mas a concepção original, de uma busca de luz em meio às sombras, é desta Sinfonia Nº 5.
A mais descritiva: Sinfonia Nº 6 em fá maior (1808 – conhecida como “Pastoral”)
Composta junto com a Nº5, a sinfonia conhecida como “Pastoral” é uma obra inédita por ter, pela primeira vez na história, subtítulos escritos pelo próprio compositor em cada um dos 5 movimentos: “Despertar de alegres sentimentos na chegada ao campo”, “Cena junto ao riacho”, “Alegre reunião de camponeses”, “Tempestade”, “Canto alegre e de gratidão dos pastores depois da tempestade”. A vida dos camponeses é perturbada por uma violenta tempestade, assim como a estrutura clássica de quatro movimentos é perturbada com o aparecimento de uma página sem forma musical definida entre o Scherzo e o Finale.
Uma “Sinfonia programática? O compositor francês Hector Berlioz dirá que sim e o imitará, e pode-se dizer que o caminho para a música descritiva do século XIX (poemas sinfônicos) teve início a partir desta bela obra.
A mais perfeita: Sinfonia Nº 7 em lá maior (1812)
A Sinfonia Nº7 de Beethoven é completamente desprovida de um programa, de intenções políticas ou filosóficas. Sua notável unidade surge apenas de fatores musicais. Pela última vez Beethoven escreve numa sinfonia uma introdução lenta, e no final dela surge algo bem experimental: a nota “mi” é repetida sozinha, sem acompanhamento, mais de 50 vezes. Destes inúmeros “mis” nascerão os temas do primeiro, do segundo e do quarto movimentos, e a contínua alternância de lá maior e fá maior culmina com a utilização desta segunda tonalidade como tom do scherzo, o terceiro movimento. Tudo se encaixa, a unidade é esplendorosa. Mas aliada a esta unidade está uma energia rítmica que levou Wagner a chamá-la de “Sinfonia da dança”. Longe de qualquer elemento extramusical estamos aqui diante de uma de uma obra musicalmente esmerada. Talvez a mais perfeita e equilibrada sinfonia de Beethoven.
A mais bem humorada: Sinfonia Nº 8 em fá maior (1812)
A mais curta das sinfonias de Beethoven é a última obra, segundo o pianista e musicólogo americano Charles Rosen, a apresentar o típico humor do classicismo vienense. Com seu primeiro movimento quase dançado, percebemos que o autor brinca de ser “antiquado”. No segundo movimento um ritmo repetitivo (imitaria um tac-tac de um metrônomo?) arma todas as divertidas “armadilhas” de notas rapidíssimas, que parecem mesmo uma gargalhada. Esta é a única sinfonia de Beethoven a ter um verdadeiro Menuetto, e o ritmo rapidíssimo do último movimento mostra que o revolucionário não estava de folga: um movimento em fá maior de repente tem um episódio em fá sustenido menor. Nem Mozart e nem Haydn fariam isso, mas não tenho dúvida de que eles, se estivessem vivos, adorariam esta composição.
A mais grandiosa: Sinfonia Nº 9 em ré menor (composta entre 1817 e 1824- conhecida como “Coral”)
A última sinfonia completada por Beethoven (ele chegou a esboçar uma décima) é uma obra que leva às últimas consequências os ideais clássicos de uma sinfonia. Com uma duração que ultrapassa até a de três sinfonias de Haydn ou Mozart juntas, há nela uma expansão de tempo e emoções gigantescas. Seguindo o esquema da Sinfonia Nº5, um caminho das trevas para a luz, ele atinge o objetivo final não acrescentando outros instrumentos como na sinfonia anterior, mas acrescentando um coro e quatro solistas. Sua originalidade foi vista muitas vezes com desconfiança, mas hoje em dia a “Nona Sinfonia de Beethoven” é sinônimo de algo marcante e grandioso. Seu tema final é o Hino da Comunidade europeia, e sua acessível e memorizável melodia tornou-se uma espécie de símbolo mundial de valores positivos. Utilizando-se de uma Ode do poeta Friedrich Schiller, consegue realizar em termos musicais a grande fé humanitária do compositor.
Prediletas? Cada um tem a sua
Não sei dizer qual é a minha Sinfonia de Beethoven predileta. Convivo com elas há 4 décadas, já regi todas, algumas delas algumas dezenas de vezes, e analiso continuamente com meus alunos. Quanto à predileção eu diria que muda de dia para dia. Um dia quero a sutileza da Quarta, outro dia me agrada a perfeição da sétima. Amo todas. Não saberia viver sem uma delas.