Hector Berlioz (1803-1869), para muitos o mais importante compositor francês do século XIX, continua sendo mal amado e mal compreendido. Ainda soando revolucionário e moderno morreu há um século e meio: no dia 8 de março deste ano são lembrados os 150 anos da morte deste gênio singular, revolucionário e ambicioso. Talvez esta última característica que destaco é que mais lhe vale a peja de “exagerado” e “barulhento”. Realmente Berlioz em certas obras, especialmente sua “Grande missa dos mortos” opus 5, de 1837 (seu Réquiem) é um tanto quanto excêntrico em suas exigências: uma orquestra de 120 músicos, quatro bandas colocadas nos quatro pontos cardeais e um coro de 210 vozes. O que me impressiona muito é que esta obra foi escrita apenas 10 anos depois da morte de Beethoven e apresenta sons inesperadamente revolucionários, como no caso do “Hostias” que é instrumentado para três flautas e 8 trombones baixos, isso sem contar que no “Tuba mirum” além das bandas citadas intervêm 8 (!) pares de tímpanos e 10 pratos…Mas, filtrando estas excentricidades, o que encontramos na produção de Berlioz é uma obra profunda e bela.
A iniciação musical de Berlioz é bem atípica. Seus instrumentos de formação foram o violão e o flageolet, um tipo de flauta híbrida, nunca usada em orquestras sinfônicas. Talvez pelo fato de não ter estudado piano a harmonia de Berlioz seja tão atípica e inesperada. Inconformado que a arte servia apenas à diversão da burguesia que ganhara o poder depois da revolução francesa, Berlioz se incomodava muito com o status quo que o cercava e com as regras do Conservatório de Paris, mas se submeteu às normas da instituição para ganhar o cobiçado “Prêmio de Roma” (foi o primeiro compositor importante a ganhar a competição), o que lhe deu um certo conforto material por alguns anos. O único músico que idolatrava era Beethoven (mas também admirava Schubert e Carl Maria von Weber), sendo que seu panteão era habitado principalmente por gênios da literatura: Shakespeare, Goethe, Virgílio e Lord Byron. Para ele a música deveria descrever, pintar, dramatizar. Não há o que se chama de “música absoluta” na maior parte da produção de Berlioz: música descritiva, dramática, cênica. Este é o seu universo Mas o surpreendente é que com tantas “segundas intenções” sua música é sedutora, com temas marcantes e climas tão musicalmente consistentes que podemos abrir mão dos “programas descritivos”.
Neste afã revolucionário obras de difícil classificação, como sua genial “A danação de Fausto” de 1846, que está entre ser uma ópera ou um oratório, ou sua belíssima “Sinfonia dramática Romeu e Julieta” (1839) cujo último movimento é uma cena de ópera. O que dizer de sua Sinfonia para viola e orquestra “Haroldo na Itália” (1834) que está entre uma sinfonia e um concerto? Pouca gente sabe que sua obra sinfônica mais popular, a “Sinfonia Fantástica” (1830), tem uma sequência quase que ignorada: “Lélio, ou o retorno à vida”, obra para um ator, coro e orquestra, partitura belíssima e problemática. E voltando à questão de Berlioz ser um gênio mal amado, vergonhoso saber que sua ópera “Os troianos” (1858), a mais importante ópera francesa do século XIX, só foi executada completa, sem nenhum corte, em 1969.
Berlioz levou às últimas consequências o “Programa descritivo” da Sinfonia pastoral de Beethoven e a possibilidade de um coro atuar numa sinfonia, como na última do compositor alemão. Pai da orquestra moderna, autor do primeiro “Tratado de orquestração” da história e soberbo crítico musical, é sem dúvida, um homem muito à frente de sua época, que não o reconheceu plenamente, o que lhe levou a morrer na pobreza. Um compositor que permanece um vanguardista mesmo que tenha morrido há um século e meio.
Vídeos
A Grande missa de mortos, o Requiem opus 5, com tudo o que o autor pediu. Notem as bandas isoladas e a enorme quantidade de tímpanos aos 15:09
Haroldo na Itália, baseado no livro de Lord Byron. Haroldo é representado no pungente timbre da viola