Poucas pessoas lembraram que no último dia 1 de fevereiro completaram-se 110 anos do nascimento de um dos maiores músicos nascidos no Brasil: Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). Sejamos claros e sinceros: a obra dele mereceria sim ser mais conhecida, mais executada. Em termos formais Guarnieri foi o mais importante compositor brasileiro. Apesar de ter escrito menos Sinfonias que Heitor Villa-Lobos as de Guarnieri, sobretudo as de número 2,3,4 e 6, são as mais bem estruturadas e orquestradas entre as sinfonias de autores nacionais, e arrisco mesmo a dizer que Guarnieri foi o nosso maior sinfonista. De Camargo Guarnieri temos a mais importante Sonata para piano de um autor nacional, sua Sonata, de 1972. É obra de uma originalidade impressionante, que alia atonalismo (para aqueles desavisados que acham que o compositor é reacionário) com um forte sotaque nacional com uma sensacional fuga final, uma fuga atonal, e com uma escrita pianística digna dos maiores compositores. Se suas Sinfonias ganharam gravações exemplares da OSESP e sua Sonata para piano já foi registrada e defendida por importantes pianistas (Max Barros, Rosângela Yazbec Sebba, Belkiss Carneiro de Mendonça, Antonio Vaz Lemes) inúmeras obras primas de Guarnieri continuam mofando esquecidas em estantes e gavetas. Os exemplos são inúmeros, mas cito apenas o que acredito ser o mais escandaloso: Guarnieri compôs em 1970 “O caso do vestido” obra para canto e orquestra com admirável texto de Carlos Drummond de Andrade. Linha de canto excepcionalmente expressiva, com elementos de canto-falado (Sprechgesang) e orquestração primorosa (como sempre). Quem já ouviu falar desta obra? Poucas são as pessoas que tentam reverter estes absurdos e cumpre aqui fazer justiça e evocar o trabalho quase solitário feito pelo Maestro Lutero Rodrigues que, com imenso esforço redescobriu obras primas de Guarnieri, como os Concertos para Violino e orquestra do mestre, obras sensacionais.
Guarnieri versus Villa-Lobos
Não há dúvida, a produção de Guarnieri é menos sedutora que a produção de Villa-Lobos, e acaba “vendendo” menos no exterior (o grande violonista brasileiro Fabio Zanon chegou a afirmar numa conversa que Guarnieri “vende” mal na Europa), mas não há dúvida que quando Villa-Lobos se aventura em formas clássicas ele não é tão feliz como Guarnieri. Se comparamos não só as Sinfonias, mas os Concertos para piano e orquestra e as Sonatas para violino e piano, as de Guarnieri são infinitamente superiores. No entanto Guarnieri possui também algumas obras em formas livres que são geniais, sobretudo seus 50 Ponteios para piano e sua belíssima Suíte Vila Rica para pequena orquestra, originalmente trilha sonora do filme Rebelião em Vila Rica de 1957. Com coragem podem ser obras apresentadas com sucesso no exterior.
Guarnieri: existência amargurada
Conheci mais de perto Camargo Guarnieri a partir de 1982. Na época ele era Diretor musical da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (OSUSP) e frequentei diversas vezes seu estúdio na Rua Pamplona em São Paulo. Já nesta época ele me confidenciava sua frustração por não ter o tipo de reconhecimento que ele esperava merecer. Mas a coisa piorou demais em fevereiro de 1990, quando seu filho Daniel Paulo, que na época tinha 18 anos de idade, sofreu um grave acidente automobilístico. As imensas despesas revelaram que um de nossos maiores artistas possuía uma situação financeira extremamente modesta. Com muita dor acabou vendendo para um colecionador japonês seu bem mais valioso, um retrato que Candido Portinari fez dele. Eu o encontrei pela última vez um ano antes de sua morte, e aos prantos falava: “será que Deus esqueceu de mim? Não vai me chamar nunca? ” Ao ver sua amargura e pobreza lembro de um pequeno trecho de um livro de conversações entre o compositor Igor Stravinsky e o maestro Robert Craft em que o compositor russo ao ver uma foto dos compositores austríacos Alban Berg e Anton Webern, que morreram na miséria disse: “Eu comparo o triste e miserável destino destes homens que não cobraram nada deste mundo mas que criaram uma música que será sempre lembrada quando falamos da primeira metade do século (XX) e com as “carreiras” de maestros, pianistas, violinistas, vãs excrescências. Daí vejo esta fotografia de dois grandes músicos, dois seres de espírito puro,””herrliche Menschen”, e fica restabelecido em mim um senso de justiça no mais profundo nível”. O mesmo penso ao falar de Camargo Guarnieri: nunca teve fortuna, nem contas na Suíça, mas, ao contrário de “excrescências vãs”, a música clássica brasileira não seria a mesma sem ele.