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Glauber Rocha: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça
Glauber Rocha: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça| Foto:

O fenômeno artístico incarnado pelo cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981), talvez o mais importante cineasta brasileiro da história, se valeu, em suas trilhas sonoras, de uma escolha perspicaz e sensível das manifestações musicais de clássicos brasileiros, com fortes e eficazes utilizações eventuais de Marlos Nobre e Carlos Gomes, e constante de Villa-Lobos. Esta utilização começa quando o cineasta, aos 25 anos, concebe “Deus e o diabo na terra do sol”, filme que foi indicado para a Palma de ouro do Festival de Cannes de 1964. Nesta epopeia absolutamente genial, a miséria do sertão nordestino, a enganadora crendice popular e a desesperança de todo um povo encontram eco numa trilha sonora muito bem urdida, que se utiliza de partituras essenciais de Villa-Lobos associadas a cantos populares do Nordeste. Glauber Rocha descobre e valoriza o grande potencial humano de algumas páginas de nosso maior compositor que revelam paisagens e sentimentos raramente associados anteriormente à obra do mestre. Dois, entre muitos, momentos mágicos da união da câmera original de Glauber e da música de Villa-Lobos: A primeira cena do filme, em que há uma longa panorâmica da aridez nordestina, com animais morrendo em meio à seca, encontra um suporte maravilhoso em páginas da Bachianas brasileiras Nº 2, especialmente a parte central dos seus 2 movimentos iniciais. Depois da morte do cangaceiro Corisco, o personagem principal, Manuel, em uma corrida desenfreada, acaba constatando na cena final aquela máxima nordestina: “O sertão vai virar mar”. A imensidão deste mar lendário é retratada musicalmente pela parte final do Choros Nº 10 “Rasga coração”. Junção genial, emoção pura.

Yoná Magalhães enm cena de

Yoná Magalhães enm cena de “Deus e o diabo na terra do sol”

“O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”

Em 1969 Glauber Rocha realiza a sequência de “Deus e o diabo na terra do sol”, já em cores, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, filme em que Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros, se arrepende de sua vida que o afastou de seu povo. Além de Villa-Lobos, a trilha sonora se utiliza das páginas mais experimentais do compositor pernambucano Marlos Nobre. Apesar do pernambucano aparecer nos créditos como compositor da música do filme a trilha sonora utiliza também muitas páginas de Villa-Lobos e canções populares de repentistas nordestinos. O avanço estético de Glauber Rocha encontra suporte em obras de Marlos Nobre como Rhythmetron (a primeira obra brasileira escrita para um grupo de percussão) e Ukrinmakrinkrin (composição de 1964, altamente experimental). Mas Villa-Lobos também está presente. Por este filme Glauber Rocha recebeu o prêmio de “Melhor diretor” no Festival de Cannes de 1969.

Paulo Autran, vivendo um ditador ao som de Carlos Gomes

Paulo Autran, vivendo um ditador ao som de Carlos Gomes

Há 50 anos “Terra em transe”, um filme que permanece atual

Entes estes dois filmes, em 1967, Glauber Rocha realiza mais uma obra prima: Terra em transe, ganhador do prêmio máximo do Festival de Locarno daquele ano. Passado num país imaginário, Eldorado, ele resolve o enigma do verdadeiro país imaginado utilizando páginas de Villa-Lobos (principalmente as Bachianas Nº3): sim, estamos no Brasil. O pretenso ditador, Porfirio Diaz, magnificamente interpretado pelo ator Paulo Autran, encontra suporte musical em páginas da ópera Il Guarany de Carlos Gomes. Seria Carlos Gomes, um colonizado? Este ridículo personagem, que fica o tempo todo segurando um crucifixo e soltando frases messiânicas, não só utiliza como cenário de sua casa as escadarias internas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas no seu embate definitivo com o jornalista Paulo Martins (vivido por Jardel Filho) chega a encontrar suporte no Othello de Verdi (na voz de Mario del Monaco). As manipulações do dono das televisões Don Julio Fuentes (vivido por Paulo Gracindo, uma paródia de Assis Chateaubriand ou Roberto Marinho) e do líder hipócrita-populista Felipe Vieira (José Lewgoy) contra o bem-estar do povo que é retratado com o som de Villa-Lobos. Quanto ao ambiente decadente que envolve o jornalista supracitado e as tramoias todas aparecem no som quase que inócuo de Sérgio Ricardo, aquele que os créditos responsabilizam como autor da trilha sonora. Creio ser uma imprecisão: o embate musical verdadeiro acontece, no filme, entre Villa-Lobos e Carlos Gomes. Villa-Lobos voltaria a ser utilizado por Glauber Rocha em seu último trabalho premiado (melhor curta no Festival de Cannes), o curta que descreve o enterro de Di Cavalcanti (1976), até hoje censurado (apesar de estar disponível no youtube).

Atualidade de Glauber

Muito triste ver que a situação no nordeste do Brasil não mudou muito desde que os filmes de Glauber foram rodados por lá. E “Terra em transe”, rodado há 50 anos, pode ser usado como um eficiente retrato atual da nossa classe política. Glauber Rocha foi um dos maiores artistas nascidos neste país, e teve a sabedoria e cultura de se associar com o que de melhor a nossa música clássica tem a oferecer. Sua morte, se não foi provocada como muitos disseram, foi comemorada pelos que estavam no poder naquela época, os militares. Na versão de sua mãe, Lúcia Rocha, o filho “não morreu da vontade de Deus; morreu de uma doença chamada Brasil”. Até nisso ele continua atual.

Glauber Rocha no Youtube. Cópias de alta qualidade

Deus e o diabo na terra do sol (1964)

Terra em transe (1967)

O enterro de Di Cavalcanti (1976)

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