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Sempre no final do ano pensamos em nos solidarizar com os conhecidos, e se isto às vezes me parece um pouco artificial, acabei me lembrando de grandes amigos, que amo muito, e que me passaram intimidades através de “cartas” em uma linguagem que poucos compreendem. Eu afortunadamente aprendi, através de muito estudo e prática, a entender esta linguagem. E é para eles que meu pensamento se volta neste momento. Amigos que convivem, através de suas mensagens, há muitas décadas comigo.

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Uma destas “cartas”, das mais interessantes, fala do limiar entre a vida e a morte. Esta mensagem começa com um puro acorde de dó maior, que no compasso seguinte se transforma numa sombria dissonância e volta a ser um acorde simples. Esta “carta” é o Quinteto em Dó maior para quarteto de cordas e um segundo violoncelo de Franz Schubert (1797-1828), escrito pouco antes da morte do autor. “Carta” longa e bela. Apesar desta morte ter ocorrido 130 anos antes de meu nascimento, não só “li” a mensagem, mas refleti, e justapus muitas angustias da minha vida com a de quem morria de uma doença incurável naquela época, e que conseguia, apesar da dor e da solidão, escrever algo tão lindo.

Outra “carta” foi mandada por um homem de 74 anos de idade. Apesar de sua idade este compositor estava apaixonado por uma mulher bem mais jovem. Este homem era o tcheco Leos Janácek (1854-1928), e no último ano de sua vida escreveu uma mensagem cheia de alegria, cheia de amor. Tem o título de “Cartas íntimas”. Este seu Segundo Quarteto de Cordas é sempre uma fonte de coisas positivas para mim, e justapus muitas angustias da minha vida com a de quem se apaixonava, mesmo sabendo que este era um amor impossível.

Procurando um pouco mais encontrei outra destas “cartas”, que foram escritas, como disse Villa-Lobos, sem se esperar uma resposta. Deste próprio Villa-Lobos (1887-1959) recebi uma carta que falava da miséria, da tristeza, da desesperança de meu povo. Esta “carta” é a Bachianas Brasileiras Nº 2. Nas suas quatro partes meu conterrâneo descreve uma situação que parece não mudar até hoje. Justapus muitas angustias da minha vida com a de quem enxergava meu país com a lucidez que deveria ser mais freqüente entre meus amigos.

E eis que encontro uma “carta” bem antiga. Na realidade uma parte de uma mensagem, já que a maior parte dela foi destruída numa guerra. É uma “carta” de um músico italiano de 41 anos, chamado Cláudio Monteverdi (1567-1643). Este grande amigo fala, com raro senso dramático, de uma mulher abandonada por seu amante. Toda a dor e angústia desta trágica figura é passada no “Lamento de Ariana”. Justapus muitas angustias da minha vida com a de quem tinha a capacidade de revelar os mais profundos sentimentos de alguém que é abandonado.

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E mais uma “carta”. Esta bem breve. Fala da solidão, da velhice. Foi escrita por johannes Brahms (1833-1897) em 1893. Trata-se do Intermezzo opus 118 Nº 2. Justapus muitas angustias da minha vida com a de quem tinha a capacidade de revelar que a maturidade pode nos levar à concisão, que não exclui a profundidade.

Poderia citar dezenas e dezenas de outras “cartas” que guardo com carinho dentro de meu coração, mas não quero cansar o leitor. O que eu gostaria é que todos enxergassem a beleza destas “cartas”, escritas numa linguagem muitas vezes enigmática, mas que exatamente por causa disso são capazes de abranger um espectro enorme de sentimentos. Conhecê-las e justapô-las à nossa vida podem fazer com que nossa existência seja muito mais rica. O que eu asseguro é que já aprendi muito com esta justaposição e creio que através deste post pude deixar mais claro porque amo tanto a música. E porque ela é tão vital para mim.

As obras citadas no youtube

O Quinteto em dó maior de Schubert numa belíssima versão. Pesquise no youtube os outros três movimentos

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O Quarteto Nº 2 de Janácek numa belíssima versão

Bachianas 2 – Primeiro movimento na mais linda execução, regida pelo próprio autor

Monteverdi na bela voz e na bela presença de Anna Caterina Antonacci

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O Intermezzo opus 118 Nº 2 de Brahms na bela versão de Nikolai Lugansky