Ao ouvirmos a soberba execução das “Quatro últimas canções” de Richard Strauss com Elizabeth Schwartzkopf (1915-2006) é interessante saber que por traz de toda a espiritualidade da execução da artista se esconde o fato de que a cantora foi uma ativa participante do Regime Nazista. Tinha a carteirinha do partido e para dar uma turbinada em sua carreira fez parte da “Organização nacional de socialismo do bem-estar social” (Nationalsozialistische Volkswohlfahrt -NSV), um monstruoso braço que pregava a exclusão dos dissidentes em prol dos “arianos”. Ouvirmos sua interpretação é um ato de tolerância?
No excelente livro “Nazistas entre nós” do jornalista Marcos Guterman (Editora Contexto) tomamos conhecimento de vários criminosos de guerra que viveram placidamente no Brasil e na América Latina por muitas décadas. Mas esta tolerância não se passou apenas há cinco ou seis décadas: os recentes acontecimentos em Charlottesville, no Estado americano da Virginia, mostram que esta tolerância é mesmo endossada pelo atual presidente americano e por uma substancial quantidade de pessoas de excelente formação intelectual. Muito propícia a colocação de Marcos Guterman: como houve um julgamento em Nuremberg depois da queda do regime nazista, muitas pessoas sentiram uma espécie de sensação de que a punição havia sido realizada e a justiça tinha sido feita. Isso talvez tenha provocado este tipo especial de tolerância que fez com que assassinos como Adolf Eichmann e Joseph Mengele continuassem vivendo tranquilamente na América do Sul muitos anos depois deste julgamento de Nuremberg. Eichmann foi descoberto e raptado pelo serviço secreto de Israel, onde foi julgado e condenado, mas Mengele, o monstruoso médico que usava judeus em suas experiências inócuas, viveu perto de São Paulo uma existência tranquila. Tolerância tropical…
Músicos clássicos e o nazismo: o estranho caso de Anton Webern
Mesmo sem serem assassinos como Eichmann é interessante vermos a enorme quantidade de músicos eruditos que foram extremamente beneficiados por suas relações fortes com o regime de Hitler: Karajan, Karl Böhm, Alfred Cortot e muitos outros, apesar de sua genialidade musical, perseguiram judeus e outras minorias e dissidentes. Não creio que deveríamos agir de forma a censurar este ou aquele artista, deixar de ouvir este ou aquele cantor, este ou aquele maestro, mas creio ser importante sabermos que toleramos artistas que foram coniventes e entusiastas frente a um regime monstruoso.
Muito conhecido é o fato dos compositores Richard Strauss e Carl Orff terem se imiscuído até o pescoço com os nazistas, mas pouca gente sabe que o importante compositor austríaco Anton Webern (1883-1945), um dos mais influentes compositores do século XX, e que escrevia num estilo de original e ousada modernidade, foi um simpatizante do partido e um entusiasmado favorável à anexação da Áustria pela Alemanha nazista. Não só votou favorável ao “Anschluss” em 1938 (anexação que teve aprovação de 95% da população do “país de Mozart”) mas fez propaganda pela aprovação do mesmo. Mesmo sabendo que sua obra seria proibida de ser executada por estar afastada dos ideais estéticos do regime, acreditava que sua amada Áustria teria um futuro melhor sendo dirigida por Hitler. Curiosamente Webern morreu por um disparo acidental, perto de sua casa, por um soldado americano bêbado depois do fim da segunda guerra mundial. Regimes despóticos fascinam, seduzem, mesmo que nos destruam. Neste sentido o caso de Webern é emblemático.
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