No dia sete de setembro, sintomaticamente o dia da pátria no Brasil, saiu um artigo bastante longo referindo-se ao nosso país numa das mais tradicionais revistas inglesas, The spectator, (clicando aqui você poderá ler o texto) assinado por um renomado jornalista também inglês, Damian Thompson. Neste artigo o Sr. Thompson reflete sobre a existência de uma deslumbrante sala de concertos na capital paulista, a Sala São Paulo, em meio à cracolândia que já existia antes da inauguração da referida sala, e que lá, ao que parece, vai permanecer por um bom tempo. Em certo momento da crônica ele se disse disposto a dar uma voltinha em torno da sala de concertos mas foi aconselhado a faze-lo somente se tivesse um segurança ao seu lado. De maneira um tanto quanto poética ele cita os viciados em crack como “Zumbis”, os quais, segundo ele, andam com cobertores em volta do pescoço como se fossem mantos de um sacerdote. Ele cita os 320 assaltos à mão armada que acontecem diariamente na cidade de São Paulo, dizendo que a sala está numa das mais perigosas localidades do continente. Ele também se refere à orquestra sediada na Sala São Paulo, a OSESP, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Diz que a orquestra tem um bom padrão, que é a melhor orquestra do Brasil, mas que ainda está longe de ser uma das grandes orquestras do planeta. Diz que talvez em dez anos ela possa ser, mas que daqui dez anos as coisas serão diferentes a nível internacional, por isso não há nenhuma garantia no assunto, segundo ele.
Foi na sequência da matéria que entendi o interesse do jornalista em falar sobre uma problemática brasileira: a matéria não saiu dia sete de setembro por ser a data nacional brasileira, mas no mesmo dia, sete de setembro, a maestrina titular da Osesp, a americana Marin Alsop, iria ser a primeira mulher a reger, frente à Sinfônica da BBC a última noite (o último concerto) do Proms, o maior e mais tradicional festival de música clássica do mundo, que acontece na cidade do The Spectator, Londres. Seus elogios parecem serem intermináveis à maestrina americana, deixando de lado o fato de que a mesma permanece em São Paulo pouco tempo em cada temporada. Comenta um concerto ocorrido na própria Sala São Paulo e se diz admirado com a reação entusiasmada do público quando a execução de uma “obra contemporânea”. Ora , esta obra é um pastiche feito pelo mediano (para não usar outro termo) compositor americano Christopher Rouse, Der Gerettete Alberich. É daí que ficou ainda mais clara a intenção do artigo. Nós, pobres brasileiros, em meio a uma cracolândia, necessitamos das mãos fortes e amigas de estrangeiros, compositores, maestros (ou maestrinas), instrumentistas, e mesmo jornalistas como ele, para sairmos de nossa desorganização e incapacidade. Para tanto ele dá uma pitada de veneno falando mal de John Neschling, o ex maestro da OSESP, dizendo que agora, nas mãos de Alsop a orquestra caminha, segundo ele, no caminho correto. O artigo em resumo foi um gigantesco jogo de “marketing” para ajudar o feito londrino da maestrina americana que casualmente aconteceu na nossa data nacional.
Abismo social e cultural
No artigo de Thompson ele descreve com detalhes o projeto educacional que Marin Alsop realiza em Baltimore, nos Estados Unidos, um projeto conhecido como OrchKids, inspirado no “El Sistema” venezuelano, e que tem apresentado resultados excelentes. É uma pena que uma figura internacional como ela e o prestigio que a OSESP já conseguiu no Brasil não viabilizem este tipo de projeto por aqui. Este contraste sentido pelo jornalista inglês entre a Sala São Paulo e o seu entorno mostra claramente a falta de visão social que impera em nossa classe governante. A Sala São Paulo e a nova OSESP são criações ligadas às décadas de poder do PSDB em São Paulo. Numa visão que soma excelência à exclusão a junção de uma magnífica acústica e uma boa orquestra aos mais profundos contornos da miséria humana mostra de forma clara um problema bem sério que temos que saber enfrentar. O abismo social pode acabar se revestindo em um abismo cultural. A música clássica, sempre acusada de elitista, acaba se prestando a um projeto que deveria ter mais aspectos educativos e cujos mantenedores públicos, que injetam uma grande quantidade de recursos, não possuem visão alguma de transformar a sociedade como um todo, e não apenas em pequenas partes. Mantendo este estado de coisas a Sala São Paulo continuará, com toda a sua excelência, estando em meio a hordas de “zumbis”, como disse o jornalista inglês.
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