Uma grande injustiça se fez quando o mundo condenou o compositor Antonio Salieri (1750 –1825) como o algoz de Wolfgang Amadeus Mozart(1756-1791). Salieri nunca realizou as tramoias que o teatrólogo Peter Shaffer e o diretor de cinema Milos Forman colocaram em cena na peça/filme Amadeus. No entanto uma história tão maléfica aconteceu de fato com outros dois compositores, os russos Modest Mussorgsky (1839 – 1881) e Nikolay Rimsky-Korsakow (1844-1908), e daria um excelente filme, que pelo menos se basearia em fatos reais. Mussorgsky foi um personagem extremamente problemático, depressivo, que se entregou ao alcoolismo, que lhe causou sua prematura morte aos 42
anos de idade. Como compositor foi o mais ousado autor do século XIX. Basta dizer que ele foi o único compositor de seu século a nunca escrever uma Forma Sonata, e foi o primeiro compositor na história da música ocidental a fazer ininterruptas alterações de compasso e suspender aquilo que chamamos tecnicamente de Função Harmônica. Sua genialidade fica marcada por ter sido o autor da obra russa para piano do século XIX mais conhecida, os “Quadros de uma exposição”. Além disso a ópera russa mais famosa também é de sua autoria: Boris Godunov. Atento à música camponesa russa, 60 anos antes das pesquisas de campo de Bela Bartók (1881-1945), levou à música clássica as escalas e ritmos autênticos que seus companheiros do Grupo dos Cinco, Aleksandr Borodin, César Cui, Mily Balakirev e Nikolai Rimsky-Korsakow, comprometidos com a música autenticamente russa, não tinham coragem de mostrar.
Rimsky-Korsakow, que foi um bom compositor, e é autor de alguns dos mais populares itens do repertório sinfônico do romantismo como Sheherazade, Capricho espanhol e A grande Páscoa Russa, agiu de uma forma bem pouco ética com seu “amigo” Mussorgsky. Os dois chegaram a dividir uma casa, nos tempos em que Korsakow ainda era pobre, e como este pendeu claramente para uma visão mais acadêmica de construção musical admirava a criatividade de Mussorgsky, mas via com horror as ousadias do colega. Até aí é uma questão de gosto, de opinião. Mas o que Rimsky-Korsakow fez depois da morte de Mussorgsky é uma das maiores posturas antiéticas já feitas em toda a história da música. Vamos tomar algumas obras de Mussorgsky que Korsakow desfigurou, fazendo-as mais próximas de uma estética “aceitável”.
Boris Godunov
O caso mais famoso desta intromissão de Korsakow é sua edição da ópera Boris Godunov (1868-1873). Sem dúvida esta ópera é muito mais popular do que as 15 que Korsakow compôs, e a tal da edição que ele preparou da ópera, e que se tornou tão popular a partir do fim do século XIX, não foi somente uma reorquestração, mas foi uma banalização do que o autor pretendia. Vou citar apenas um exemplo, entre as centenas de alterações que Korsakow fez. Quando o povo, retratado pelo coral, se manifesta, o faz numa métrica irregular, numa linguagem muito próxima à linguagem autêntica do povo simples da Rússia. Alternam-se compassos de dois, três, cinco tempos. Korsakow passa por cima destas irregularidades com um “trator” e tudo vira um eterno 3/4 . Harmonias ousadas pensadas pelo compositor viram encadeamentos banais, e toda a autenticidade pensada por Mussorgsky é mascarada por um discurso aceito pelos “sábios”, mas longe da expressão popular pensada por seu autor verdadeiro. A orquestração de Mussorgsky é menos sedutora do que a de Korsakow, mas era assim que o compositor enxergava a triste história de seu país, retratada nesta ópera. Esta versão apócrifa de Boris Godunov nunca foi completamente aceita, e maestros do nível do tcheco Rafael Kubelik (1914-1996) ou do húngaro Georg Solti (1912-1997) insistiam em realizar a versão autêntica. Quando Herbert von Karajan (1908-1989), gravou a ópera na década de 70 disse aos produtores que a versão original “não venderia”.Por isso optou pela versão de Korsakow (Karajan era famoso por seus “princípios”). Mas a partir destes mesmos anos 70 a coisa virou completamente. As pessoas perceberam aos poucos as virtudes da versão original, e hoje em dia a versão de Korsakow é raramente ressuscitada. Maestros como Abbado, Gergiev, Bychkow, Fedosseyev, Tchakarow, Rostropovich entre muitos outros, gravaram a versão original.
Uma noite no monte calvo
Descobriu-se com o correr dos anos que mentir a respeito de Mussorgsky foi uma ação corriqueira em Korsakow. Ele teria dito que seu colega nunca tinha orquestrado seu poema sinfônico “Uma noite no monte calvo” (1867). Mentira tem perna curta, diz o velho ditado, pois por volta de 1930 foi encontrada a versão original, orquestrada, deste que foi o primeiro poema sinfônico russo. Mais uma vez ficamos impressionados com a banalização que Rimsky-Korsakow fez com esta obra prima. Este poema sinfônico que descreve um sabath de bruxas tem em sua forma original uma orquestração crua, áspera, e sua métrica é sempre irregular. Korsakow, ao editar a obra alguns anos depois da morte de Mussorgsky, transformou-a em um banal “conto de fadas”, algo bem diferente da ideia original. Orquestração “polida”, métrica eternamente em 4/4, esta versão infelizmente continua sendo executada com frequência. No entanto maestros sérios como Abbado, Salonen, Dohnanyi e Kitaenko (que realizou a estreia brasileira desta versão) são defensores da versão original.
Canções e danças da morte
Mussorgsky foi um grande compositor de canções, e suas obras do gênero mais famosas são as “Canções e danças da morte” (1877) para voz de baixo e piano. Kosakow meteu a mão também nesta obra, e mais uma vez vemos que ele subverteu totalmente a ideia de seu colega. Tenho na minha biblioteca um raro exemplar da partitura revista por Korsakow. A ordem das 4 canções foi mudada aproximando-a aos quatro movimentos de uma sinfonia clássica, e uma das canções, com o titulo de Trepak, uma dança russa, começa com três acordes que são uma completa novidade na música do século XIX. O que Korsakow fez beira o cômico: os três acordes passam a ter as três funções básicas da harmonia tonal. Muita maldade, muita falta de ética. Felizmente esta versão está praticamente esquecida.
Kowantschina
No século XX o compositor Dimitri Shostakovich (1906-1975) percebeu os absurdos feitos por Korsakow, e sua edição da ópera Khovantshchina (1772-1880) de Mussorgsky é de uma honestidade que merece nosso respeito. Mussorgsky não chegou a orquestrar esta sua última ópera e Korsakow apressou-se a faze-lo. Mas além de orquestrar, cortou um monte de cenas, mudou harmonias, ritmos, etc. Fez o serviço sujo de sempre. Shostakovich, ao contrário, respeitou a modernidade de Mussorgsky e tornou possível ouvirmos esta obra da maneira mais próxima da pensada por seu autor. Ele também orquestrou as “Canções e danças da morte”, obedecendo as harmonias e os ritmos inusitados, mantendo o mesmo colorido da orquestração de Mussorgsky, colorido este que foi tomado como “desajeitado” por muito tempo.
Ética de uns, falta de ética de outros
Na história da música diversos compositores realizaram versões de obras de outros compositores. É o caso de Antonio Vivaldi (1678-1741), que foi magistralmente retrabalhado por J. S. Bach (1685-1750), ou é o caso de Mozart (1756-1791) que retrabalhou algumas obras de Handel (1685-1754). Mas nunca, nem Bach nem Mozart, mudaram uma harmonia sequer. Suas versões são prova de um profundo amor pelas obras e de um profundo respeito. Mesmo compositores do século XX como Anton Webern (1883-1945) retrabalharam obras de Bach, mas o respeito sempre foi muito grande. Para aqueles que defendem Rimsky-Korsakow dizendo que a ele se deve a popularidade das óperas de Mussorgsky, eu perguntaria: o que seria de Tristão e Isolda de Richard Wagner se outro músico aplainasse suas dissonâncias, ou o que seria se outro compositor tornasse o Wozzeck de Alban Berg mais tonal para torna-las mais acessíveis? Mussorgsky foi o mais radical compositor de seu tempo. Sua obra só foi totalmente compreendida um século depois de sua morte. Este atraso enorme se deve a uma ação cuja falta de escrúpulos é tão grande que definitivamente eu não consigo aceitar.
Uma produção feita em Turim da versão original do Boris Godunov. A gravação é da ópera completa.
Uma bela execução da versão original de “Uma noite no monte calvo” com a Orquestra Filarmônica de Berlim regida pelo excelente maestro romeno Ion Marin
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