Pierre Boulez, falecido aos 90 anos no início de janeiro, ficou muito mais conhecido por sua atividade como maestro do que pelo seu trabalho como compositor. Penso mesmo que apenas como compositor ele não viveria numa enorme vila em meio a um gigantesco bosque em Baden-Baden na Alemanha, onde estão dezenas de valiosíssimas obras de arte. Sei que sua obra não é fácil de ser compreendida, mas é fato também a atitude tipicamente hostil do público de música clássica frente à criação contemporânea. Diante desta hostilidade muitos compositores, alguns até mesmo com as melhores intenções, resolveram “dourar a pílula”, facilitar as coisas para o ouvinte, e mudaram de estilo. Se observarmos certos compositores contemporâneos de Boulez, e que escreveram obras tão herméticas quanto as dele, percebemos em Boulez um tipo de firmeza que não ocorreu entre muitos de seus colegas. Karlheinz Stockhausen (1928-2007) por exemplo, um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX, autor de “Zeitmasse” e “Gruppen”, a partir dos anos 60 do século passado dedicou-se mais a happenings, verdadeiros shows onde a música, que se tornou capenga, era apenas um pano de fundo para seu “esdrúxulo” espetáculo. Luciano Berio (1924-2003), autor de obras primas como “Sinfonia” e das maravilhosas “Sequenzas”, em seus últimos anos de vida parou de compor e se dedicou exclusivamente, com resultados discutíveis, a orquestrar e completar obras de compositores do passado (Brahms, Puccini, Schubert, etc.). No caso de Krzysztof Penderecki (nascido em 1933) a mudança foi brutal, sendo que o ousado compositor de “Trenodias para as vítimas de Hiroshima” (1960) tornou-se uma espécie de neo-Bruckner em suas composições atuais. Mesmo os compositores mais jovens largaram uma postura ousada para se tornarem arautos do conservadorismo. É o caso do inglês Thomas Adés (nascido em 1977) que depois da originalidade de obras como Asyla (1977) dirigiu-se para um estilo bem mais açucarado. Aliás Penderecki e Adés são os campeões mundiais de encomendas destinadas a compositores de música clássica. A mudança de estilo foi bem providencial.
Uma produção desafiadora
Voltando a Boulez percebemos que sua produção evoluiu, amadureceu, mas nunca retrocedeu. Quando nos deparamos frente às suas primeiras obras importantes, como suas duas primeiras Sonatas para piano (1949-1950), percebemos uma certa aridez. Mas a partir de “Le marteau sans maître” (1955), obra para meio soprano e pequeno conjunto instrumental, o caminho mágico da ressonância parecia se abrir. Em 1965, com a obra Éclat, para pequeno conjunto instrumental, o som de Boulez assume um estilo que se tornou inconfundível. Reforço a questão da “ressonância” pois ao privilegiar instrumentos como a harpa, o vibrafone, o glockenspiel, o cimbalum , o violão e mesmo o piano, suas obras tornam-se realmente fascinantes por este processo “ressonante”. Uma de minhas obras favoritas do compositor, “Sur incises” (1996-1998), escrita para três harpas, três pianos e três percussionistas mostra, além de um vocabulário sempre novo, esta capacidade de certos instrumentos se complementarem. A culminância de sua linguagem acontece na obra “Répons”, concluída em 1984. As ressonâncias são enriquecidas por processos eletrônicos que modificam ao vivo os sons dos seis solistas (harpa, cimbalum, vibrafone, glockenspiel/xilofone e dois pianos). Obra ambiciosa, necessita, para ser executada, um espaço em que os seis solistas se coloquem a uma certa distância em volta da orquestra que deverá ficar no meio do espaço. Uma verdadeira Sinfonia onde percebemos nos seus 40 minutos de duração claras divisões de movimentos: uma introdução agitada, a entrada dos solistas, um movimento central bem lento, espécie de marcha soturna, um Scherzo rapidíssimo, e um Finale onde os sons se esvaem.
Mesmo com tantas dificuldades técnicas e de logística “Répons” foi executada em diversas cidades da Europa e Estados Unidos, e creio mesmo que a completa percepção da obra se dá mesmo numa execução ao vivo. Não há dúvida que muitas composições da última fase do autor, como “Dérive 1”, Dérive 2” (sua última obra completada, de 2006) e a versão orquestral de “Notations” são mesmo muito mais sedutoras, mas sua complexidade não facilita muito a sua realização e nem a sua compreensão. Em diversas ocasiões Boulez usou o termo “alienante” para composições previsíveis. Sua ideia sempre foi de lançar um desafio a quem mergulhava em suas obras, fosse esse um ouvinte ou um executante.
Novos intérpretes
Por muito tempo as obras orquestrais de Boulez só conseguiam serem realizadas quando ele próprio regia. Felizmente as inúmeras dificuldades técnicas de suas partituras têm encontrado intérpretes competentes que continuam a fazer execuções de altíssimo nível. Entre estes intérpretes seria justo aqui citar em primeiro lugar Daniel Barenboim, que tem regido diversas obras de Boulez, como “Sur incises”, “Dérive 1” e Dérive 2” e as versões orquestrais de “Notations”, que ele próprio encomendou. Destaco três jovens e excepcionais maestros: o alemão Mathias Pintscher, que dirigiu de forma brilhante “Répons” no ano passado na nova “Philarmonie” de Paris, Ulrich Pöhl, um outro jovem maestro alemão, que também regeu “Répons” em Utrecht, na Holanda, durante um Festival Boulez em dezembro de 2015 e o francês François-Xavier Roth que tem regido com frequência a obra de Boulez sobretudo à frente da Gürzenich-Orchester Köln (Colônia). Quatro músicos fantásticos que se propuseram a manter viva uma obra que muitas vezes é desprezada e esnobada. Aos músicos, especialmente os pianistas, que torcem o nariz ao se depararem frente às dificuldades das partituras de Boulez é bom lembrar que uma pianista que se tornou uma reputada intérprete de Chopin e Rachmaninoff, Idil Biret, gravou, e bastante bem, as três Sonatas para piano dele. Maurizio Pollini, renomado pianista, incluiu diversas vezes “Notations” e a “Sonata N° 2” em seus recitais. A obra de Boulez não faz mal à saúde, mas tem o poder de afugentar os preguiçosos, incapazes e, como dizia o compositor, os alienados.
Vídeos
Boulez com a Filarmônica de Berlim executa uma de suas “Notations”
Vídeos
Mathias Pintscher rege Répons em Paris no ano passado. Vídeo excepcional pela qualidade do som e da imagem. Bom de ver para quem, como eu, nunca assistiu uma execução da obra
Ulrich Pöhl dirige Le Marteau sans maître
Todas as “Notations” orquestradas com a bela regência de François-Xavier Roth
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