Os dois compositores barrocos alemães mais importantes nasceram no mesmo ano, 1685, e em cidades e datas não muito distantes. Georg Friedrich Händel nasceu em 23 de fevereiro na cidade de Halle (Saxônia- Anhalt) e Johan Sebastian Bach nasceu em 21 de março em Eisenach, em um estado vizinho (Turíngia). Apesar de tantas coisas parecidas tiveram existências bem diferentes: Händel se tornou célebre em toda a Europa, foi rico (tinha até quadros de Rembrandt e Canaletto em sua casa) e viajou muito tornando-se cidadão inglês em 1726. Bach, especialmente nos últimos anos, foi um homem extremamente modesto, nunca saiu do leste da Alemanha, e foi conhecido durante a sua vida apenas no entorno de onde viveu. Nunca se encontraram, apesar de que Bach tentou por duas vezes estar com seu colega quando este fez visitas a sua cidade natal (Halle) em 1719 e 1729, mas acabaram se desencontrando. Bach se casou duas vezes e teve duas dezenas de filhos enquanto que Händel nunca casou e nem teve filhos. Infelizmente o único ponto comum entre os dois, em sua maturidade, é que ambos ficaram cegos por causa da ineficácia do mesmo médico, John Taylor, um charlatão que abreviou a vida dos dois (já escrevi um texto sobre isso).
Bach, o Apolíneo
No primeiro livro importante do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música” (1872), o autor discorre sobre o contraste que existe no espírito criador. Na mitologia grega dois filhos de Zeus, Apolo e Dionísio, eram opostos na sua maneira de pensar e agir: Apolo era mais racional e logico, enquanto que Dionísio seria impulsivo e instintivo. Segundo Nietsche a fusão dos dois “impulsos artísticos” (Kunsttriebe) daria origem a grandes obras de arte. É neste aspecto que julgo pertinente contrapor Händel e Bach. Não há dúvida de que existe muito dos dois tipos de impulso na obra de ambos. Mas há uma maior propensão em cada um também. Se existem algumas obras de caráter Dionisíaco de Bach, como suas Cantatas profanas, Concertos e suas Suítes orquestrais (Aberturas), é em Bach que encontramos muitos dos maiores rigores lógicos de toda a história da música, e isso em proporção muito maior. Vejam por exemplo os Cânons da “Oferenda musical” e da “Arte da fuga” ou a estrutura das “Variações Goldberg”. A unidade temática de suas Suítes (ou Partitas) é racional ao extremo, e o que é mais surpreendente, é que com tanto pensamento lógico a beleza é inegável. A música contrapontística, especialmente suas fugas, é mais uma prova de que o pensamento Apolíneo é preponderante em sua produção.
Händel, o Dionisíaco
No caso de Händel existe uma inversão completa. Ele nunca escreveu obras “estritas” e suas fugas são sempre muito livres e fantasiosas. Obras destinadas a orquestra, especialmente as destinadas à realeza inglesa como a “Música aquática” e “Música para os reais fogos de artifício” e mesmo seus “Concerti grossi” e os “Concerti a due Cori” são preponderantemente instintivas e organicamente fluentes, mas sem abrir mão de uma estrutura eficiente. Händel escreveu 42 óperas (Bach, por motivos religiosos não escreveu nenhuma), que muitas vezes atendiam a exigências de empresários e cantores. Não havia nelas nenhum espaço para pensamentos Apolíneos. O pragmatismo artístico é preponderantemente Dionisíaco. Mesmo seus oratórios (escreveu 29) se dirigem muito mais à emoção do que à razão.
Uma “virada”: a surpreendente posteridade
Händel foi o primeiro compositor na história da música a escrever uma obra que nunca foi reestreada. Seu oratório “Messias”, de 1741, pode ser considerada a primeira obra musical que nunca caiu no esquecimento. Ainda durante a vida do compositor (ele faleceu um 1759, 9 anos depois de Bach) foi executada em diversas cidades da Europa e já em 1770 trechos da partitura foram executados em Nova York. Mozart, que fez uma versão da obra em alemão, o escutou integralmente pela primeira vez em Mannheim em 1777. A fama e o prestígio de Händel eram muito maiores que os de Bach até meados do século XIX. Quando chegamos no século XX a posição de Bach se inverteu completamente frente à de Händel. Bach, para muitos, é visto nos dias de hoje como o maior compositor da história, e seu prestígio tornou-se muito maior, inquestionável, quase um dogma. Não creio que, apesar de estilos parecidos, um tenha influenciado o outro, mas tenho certeza de que ambos foram grandes gênios e, apesar da diversidade, estão entre os maiores criadores musicais da história Se são diferentes em seus impulsos criativos, suas obras permanecem. É isso que importa. E, como dizia Friedrich Nietzsche, o Dionisíaco misturado ao Apolíneo, ou vice versa, fazem nascer o sublime.
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Essência do pensamento Apolíneo de Bach. Um dos cânons da Oferenda musical, Racional (apolíneo) ao extremo, mas extremamente belo
A sedução da “Música para os reais fogos de artifício”da Händel. Fulgores Dionisíacos