Nunca, em tempo algum, houve tanta perfeição técnica na execução da música clássica. A perfeição da afinação e do domínio instrumental das grandes orquestras faz com que qualquer concerto delas possa se tornar, com pouquíssimos retoques (edições), um CD prontinho. Quando ouvimos, por exemplo, uma gravação feita há 70 anos, vemos que este padrão de perfeição técnica é algo bem mais recente. É o caso de uma execução da Nona Sinfonia de Mahler gravada ao vivo em 1938 com a Orquestra Filarmônica de Viena regida por Bruno Walter. Esta mesma orquestra e este mesmo regente foram os responsáveis, 26 anos antes, em 1912, pela estreia da obra. Ao ouvirmos este precioso documento (alguns meses depois esta música foi proibida de ser executada pelos nazistas) percebemos eventuais desafinações, desencontros, ataques dúbios, coisas absolutamente impensáveis nos dias de hoje. Mas sentimos, ao ouvir esta gravação, algo que vai muito além da perfeição técnica. Sentimos uma entrega e uma honestidade que fazem deste um momento histórico. Existem inúmeros outros exemplos, como a imperfeição técnica de um pianista como Alfred Cortot ou mesmo de Guiomar Novaes. Mas o que um pequeno esbarrão da pianista brasileira pode atrapalhar a sua marcante interpretação do Carnaval de Schumann? O que estragaria a visão de Cortot da obra de Chopin, mesmo que ele às vezes não toca todas as notas? Arrisco dizer que certos artistas excepcionais não fariam sucesso nos dias de hoje caso se apresentassem como faziam em seu tempo. Muito provavelmente um maestro genial como o alemão Wilhelm Furtwängler, falecido em 1954, perderia uma boa parte de sua espiritualidade ao se sentir obrigado a ter uma técnica impecável de regência. Em resumo, não seria um Wilhelm Furtwängler. Os altos padrões técnicos seriam os responsáveis pela estandardização das leituras musicais atuais? Não há dúvida que as personalidades artísticas únicas parecem algo do passado. Quando ouvimos uma mesma Sinfonia de Brahms regida por Toscanini, Klemperer, Bruno Walter ou Mravinsky percebemos uma gritante diferença. Hoje, quando ouvimos as rotineiras leituras de uma mesma Sinfonia de Brahms regida por Lorin Maazel, Zubin Mehta, Andris Nelsons ou Paavo Järvi não sentimos grande diferença. Soa tudo igual.
Maria Callas e Martha Mödl fariam carreira hoje?
As cantoras líricas Maria Callas e Martha Mödl tiveram o auge de suas carreiras na década de 1950. Ambas, Callas no repertório italiano e Mödl no repertório alemão, estavam longe de serem perfeitas no aspecto técnico. Callas, mesmo no auge, tinha um vibrato enorme e, pelos padrões dos tempos atuais, não tinha uma voz que chamaríamos de “bonita”. Mesmo assim, alguém foi capaz de expressar os sentimentos de Violeta Valery em “La traviata” de Verdi como ela? Alguma cantora, mesmo que tecnicamente perfeita, conseguiu personificar a grandiosidade de “Norma” de Bellini? Comparem a gravação recente de Cecilia Bartolli da obra prima de Bellini com os registros de Callas. Dá até pena. Muito menos conhecida do que Maria Callas, Martha Mödl foi uma grande cantora wagneriana. Quando o maestro Wilhelm Furtwängler a conheceu em 1949 ficou tão maravilhado com seu talento dramático que imediatamente planejou aproveitá-la em diversas ocasiões. São históricas suas gravações regidas pelo maestro alemão do Fidelio de Beethoven e de “A valquíria” de Wagner. Seus registros feitos nos festivais wagnerianos de Bayreuth são maravilhosos, sobretudo o “Parsifal” de 1951, e o “Tristão e Isolda” de 1952. No caso desta última, a regência do jovem Herbert von Karajan, nos mostra o quanto ele era capaz em termos de expressão artística, antes de se afundar numa incessante e vazia busca de perfeição técnica. Voltando a Martha Mödl, ela correria o risco de ser vaiada nos dias de hoje, pela sua voz “entubada”, pelo seu curto fôlego. Mas sua Kundry, no Parsifal, permanece, na minha opinião, uma marcante referência.
Os resistentes: grandes personalidades nos dias de hoje
Apesar da já dita estandardização nos dias atuais é evidente que existem marcantes exceções. Em termos daqueles mais maduros, em termos pianísticos, não podemos deixar de citar a argentina Martha Argerich e o brasileiro Nelson Freire. Um exemplo que me impressiona muito é da violinista nascida na Moldávia Patricia Kopatchinskaja. Dediquei todo um texto aqui no blog sobre suas estonteantes gravações dos concertos de Bartók (o número 2), Ligeti e Péter Eötvös. Em termos de maestros Gustavo Dudamel impressiona por sua fantástica energia. Mas já que falamos de maestros há uma coisa que me perturba. Foi anunciado que o excelente maestro Maris Jansons abandonará a direção artística da Orquestra do Concertgebow de Amsterdã no próximo ano. Eu me pergunto: para esta fantástica orquestra fará grande diferença?
Um exemplo bem conhecido que resultou num enorme avanço é o do maestro húngaro Georg Szell, que atuou como diretor musical da Orquestra de Cleveland de 1946 até 1970, fazendo da mesma uma das melhores orquestras do mundo. O que seus sucessores fizeram? No máximo se aproveitaram do altíssimo nível da orquestra, mas nem Lorin Maazel, que foi diretor musical desta orquestra de 1972 até 1982, e o atual diretor musical, Franz Welser-Möst, contribuíram em absolutamente nada para a evolução do conjunto. Pode-se dizer que a mesmice ronda a principal cidade do estado de Ohio, que está perdendo público a cada ano para sua orquestra. O maestro argentino Daniel Barenboim, que realizou um trabalho um tanto quanto impessoal com a Sinfônica de Chicago (foi diretor musical dela de 1991 até 2006) provou que é capaz de realizar um trabalho de grande vulto: transformou a Staatskapelle Berlin em uma das melhores orquestras da Europa desde que começou seu trabalho de diretor musical da mesma em 1992, permanecendo à sua frente até hoje. Sim, há espaço para que uma personalidade musical floresça nos dias de hoje. Mas está desproporcional o número de cantores perfeitos, virtuoses da batuta ou grandes instrumentistas com o número de verdadeiros artistas. Estes realmente se tornaram raros.
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