Os recitais de piano possuem uma aparência absolutamente igual. Com isso os pianistas acabam desprezando a maior parte do grande repertório que existe para o instrumento ao se voltarem eternamente para as mesmas obras, e transformam uma apresentação num mero entretenimento, não um momento de reflexão e crescimento. Quer ver? Exemplo clássico de um recital: “Três sonatas de Scarlatti, uma sonata de Beethoven. Intervalo. Para ser um pouco “diferente” começa a segunda parte com alguma obra curta de Brahms e encerra com duas Baladas de Chopin. O público pede bis, e ele (ou ela) toca um Prelúdio de Rachmaninoff”. Esta é a regra. Não estranho uma artista da estatura de Martha Argerich não dar mais recitais solo. É evidente que existem exceções. Pouquíssimas, mas existem. A exceção mais conhecida vem da ousada carreira do pianista italiano Maurizio Pollini (nascido em 1942). Em meio a seus recitais coloca ao lado da Sonata “Hammerklavier” de Beethoven a Segunda Sonata de Boulez. Ou alterna obras de Debussy com as Klavierstücke (ele toca as IX e X) de Stockhausen. Em Salzburg, para traçar um roteiro de contraponto, justapôs uma missa de Ockegen (compositor renascentista, um coro foi chamado lógicamente) a fugas de Bach e uma das últimas sonatas de Beethoven. Ele encomendou, gravou e executou em diversas apresentações obras de seu conterrâneo e amigo, o compositor italiano Luigi Nono (1924-1990). Fiquei sabendo de um programa feito em Milão em que ele tocou “…Sofferte onde serene… “ de Nono (uma obra para piano e fita magnética) junto aos Prelúdios opus 28 de Chopin (de quem é um destacado intérprete). Se mesmo na Europa e nos Estados Unidos Pollini é um caso raro a coisa no Brasil é ainda pior. Algum brasileiro tocar uma obra como “Miroirs” de Ravel ou a Suíte opus 25 de Schoenberg está absolutamente fora de cogitação. Podem incomodar as avós ou tias que querem se embalar nas velhas melodias conhecidas. E o que dizer do repertório pianístico brasileiro? Para cumprir tabela algo curto de Villa-Lobos ou Guarnieri basta para satisfazer a obrigação. A fantástica produção pianística de criadores tão diferentes como Almeida Prado e Ricardo Tacuchian, Marlos Nobre e Amaral Vieira, entre outros, está longe da realidade dos recitais de piano por aqui. Em miúdos: mais vale a segurança do já conhecido do que o risco da novidade. Não é à toa que não há renovação de público.
O bom exemplo de Tim Ovens
O recital do pianista alemão Tim Ovens, que acontecerá na próxima terça feira dia 16, às 20 horas na Capela Santa Maria em Curitiba, parece mesmo ser um sopro de ar renovado. Assim como Pollini, Ovens alterna obras pouco conhecidas, que se utilizam de um vocabulário pouco usual junto a obras tonais de alto poder de comoção. O recital se encerra com “Quadros de uma exposição” de Mussorgsky, obra hoje em dia bastante conhecida e que foi até arranjada por uma banda de rock, Emerson, Lake and Palmer. Mas é bom saber que a obra, de 1874, foi desprezada pelos pianistas até que Maurice Ravel fizesse uma genial orquestração da partitura em 1922. Foi só a partir daí que pianistas passaram a conhecer a obra, não sem fazerem dispensáveis “correções” (Horowitz). “Quadros de uma exposição” é a obra russa para piano solo mais conhecida escrita no século XIX. Ficou esquecida por quase 50 anos. Bom lembrar.
As novidades
É, no entanto, na primeira parte do recital de Tim Ovens que se encontram as maiores novidades. Muito provavelmente três primeiras audições locais. Do compositor tcheco Leoš Janáček (1854-1928) será executada a Sonata para piano 1.X.1905. Esta data do título (primeiro de outubro de 1905) marca um protesto em que houveram mortos na cidade de Brno, na Morávia. O motivo da revolta foi a recusa das autoridades de permitirem a existência de uma universidade que ministrasse aulas em tcheco, e não em alemão, como ordenava o império de Viena. Dois movimentos em mi bemol menor com títulos bem descritivos: Pressentimento e Morte. Obra de forte impacto.
Do compositor americano John Cage (1912-1992) será apresentada a obra intitulada “Ophelie”. Composição de 1946, se inspira no caráter sensível e depressivo da personagem da peça Hamlet de Shakespeare. Impressionante é que a obra não é chocante por um uso constante de dissonâncias, mas sim por sua inusitada estrutura. Temos aqui quase que um happening musical embrionário. Obra anterior ao trabalho com piano preparado é um bom exemplo da primeira fase de Cage, que o aproxima muitas vezes às obras do francês Eric Satie. Talvez o ponto alto do recital seja a execução da Klavierstücke IX de Karlheinz Stockhausen (1928-2007). Obra escrita em 1961 é uma peça do período mais criativo do autor. Começa com 229 repetições do mesmo acorde com dinâmicas que variam de FF a pppp. Estes acordes permeiam outros sons, mais melódicos e suaves criando uma magia absoluta em termos de sonoridade. O efeito é quase hipnótico que se transforma num enorme teste na capacidade de concentração do intérprete. É importante lembrar que o grande pianista chileno Claudio Arrau (1903-1991) executou esta obra em diversos recitais, e a citava como a grande peça pianística escrita nos anos de 1960. Para encerrar algo sobre o pianista que vai se apresentar: Tim Ovens é alemão, mas atualmente é professor da Escola Superior de Música de Viena. Tendo morado um período na China atua como professor convidado no Conservatório de Pequim. Gravou quase a obra completa para piano de John Cage. Quem sabe uma pessoa tão cosmopolita poderá servir de inspiração para que a jovem geração reflita um pouco sobre o fazer música clássica de forma diferente no futuro. Assim espero. O pianista repetirá o concerto em São Paulo dia 22 (Santa Marcelina) e no Rio de Janeiro dia 24 (Unirio).
Vídeos
A Klavierstücke IX de Stokhausen na bela versão de Maurizio Pollini em um recital em Paris em 2002
A Sonata para piano 1.X.1905 de Leoš Janáček gravada na principal sala de concertos de Praga
Ophelia de Cage interpretada por Yuri Morimoto