Necessitamos certo distanciamento para avaliar a produção artística de uma época. Avaliar com exatidão a permanência de um artista ou de uma obra é impossível para seus contemporâneos, mas estando já no 13º ano do século XXI é possível avaliar o século passado, o século XX, com uma maior precisão, e ficamos impressionados com a riqueza desta época. Por isso afirmo que o século XX foi o mais rico dos séculos da música. Um pena que uma boa parte do público de música clássica não se deu conta disso.
Comparação
Tomemos a primeira metade do século XX, da qual temos já uma distância ideal de avaliação, e comparemos, por exemplo, com a segunda metade do século XVIII. De 1750 até 1800 destacam-se dois gênios de primeira grandeza: Mozart e Haydn, sendo que temos ainda nesta época as primeiras obras de Beethoven. Em resumoapenas dois gênios de primeira grandeza e um grande gênio a caminho de suas obras-primas que serão compostas no século seguinte. Não há dúvida que que o século XX nos surpreende na comparação. Basta ver que na primeira metade do século XX temos uma quantidade bem maior de compositores com gênios de primeira grandeza: Stravinsky, Schoenberg, Bartók, Ravel, Debussy, Alban Berg e Anton Webern escreveram suas principais obras nesta época.
Agora se compararmos o século XX como um todo nós percebemos que este período de tempo não fica nada a dever em diversos gêneros musicais aos séculos passados. Exemplo disso vê-se nos Quartetos de Cordas. Gênero nascido na segunda metade do século XVIII teve no século XIX certo esgotamento. Depois da magnífica produção de Beethoven, Schubert e Mendelssohn, compositores de primeira ordem criaram quartetos que não estão entre suas obras mais reconhecidas. É o caso de Schumann e Brahms. Foi no século XX que o quarteto de cordas reviveu em toda a sua plenitude em obras indiscutíveis de Bartók, Schoenberg, Alban Berg, Villa-Lobos, Webern e Ligeti. Arriscaria um palpite: o século XX vê nascer o mais importante ciclo de quartetos desde os dezassete quartetos de Beethoven: Os seis quartetos de Béla Bartók. Em termos de Concertos para piano e orquestra o século XX não fica nada a dever ao século XIX já que os concertos de Prokofiev, de Bartók, de Lutosławski de Schoenberg e de Ravel estão entre os melhores concertos para piano da história. O mesmo pode-se dizer dos Concertos para violino e orquestra: as obras do gênero de Prokofiev, Bartók, Berg, Ligeti, Shostakovich, Schoenberg e Sibelius ocupam uma posição que não faz feio entre os concertos para violino do século XIX e mesmo do século XVIII.
A ópera no século XX
A ópera perdeu o seu papel social no século XX para o cinema. Quando falo “papel social” refiro-me à espécie de diversão e convivência tão sabiamente descritas em romances do século XIX de Machado de Assis e Tolstoi. Mesmo tendo perdido este papel para o cinema a ópera no século XX tem um vigor impressionante. Além das óperas de Puccini, pouco mais inclinadas para a grande ópera italiana do século XIX, temos no século passado algumas das óperas de maior qualidade da história, com uma inesgotável renovação de linguagem: Pelléas et Mélisande de Debussy, O Castelo de Barba Azul de Bartók, Moses und Aron de Schoenberg, Wozzeck e Lulu de Alban Berg, Peter Grimes de Britten, Os soldados de Zimmermann e “Le grand Macabre” de Ligeti são exemplos claros disso. No século XX temos um compositor com uma das mais importantes produções operísticas de toda a história da música: Richard Strauss. Dele temos pelo menos cinco óperas entre as melhores de toda a história: Salomé, Elektra, O cavaleiro da rosa, Ariadne em Naxos e A mulher sem sombra. Em resumo, o século XX tem uma produção operística superior a todos os séculos anteriores, como já disse, mesmo tendo perdido seu papel social.
Século XX. O século da versatilidade
Muito da riqueza musical do século XX vem de sua versatilidade. Autores de primeira grandeza como Villa-Lobos e Bartók alternavam, em termos de linguagem, estilos completamente distintos num mesmo período de criação. Ao mesmo tempo em que o compositor brasileiro escrevia uma obra bem abstrata e atonal em 1946, seu Duo para Violino e violoncelo, ele compunha no ano anterior sua Sinfonia Nº 7, obra francamente tonal. O mesmo se passa com o compositor húngaro que escrevia em 1927 uma de suas páginas mais afastadas do tonalismo, seu Quarteto de cordas Nº 3, ao mesmo tempo em que compunha uma de suas obras mais acessíveis, sua Rapsódia Nº 1 para violino e piano. Esta versatilidade dos compositores explica muito da pujança musical do século XX. Um século que vê de forma muito saudável o atonalismo, o tonalismo, o serialismo e a música eletro acústica num espectro produtivo nunca visto antes.
A música brasileira
O século XX é também um século de ouro para a música clássica brasileira. Além do já citado Heitor Villa-Lobos, o século XX mostra um enorme fôlego da produção musical de nosso país. Além de Camargo Guarnieri o século XX vê surgirem compositores de altíssima competência como Edino Krieger, Marlos Nobre, Almeida Prado, Ricardo Tacuchian, Jorge Antunes, etc. O exemplo maior entre nós da versatilidade saudável do século passado é encontrado na obra de Radamés Gnatalli. Este compositor gaúcho é exemplo notável desta maleabilidade excepcional de linguagens. Por isso digo que a música brasileira tem no século XX seu século de ouro.
O século XXI
Sinto-me completamente incapaz de fazer previsões a respeito de nosso século, mas algumas obras me deixam com uma tendência de que este século será incrível também. Basta vermos o imenso sucesso da ópera “A tempestade” do compositor inglês Thomas Adés, escrita em 2004, e “Seven” para violino e orquestra do compositor húngaro Peter Eötvös, escrita em 2006. Nosso século promete. Basta percebermos.
O que o século XXI já nos apresenta de melhor: Seven de Peter Eötvös, escrito em homenagem aos sete astronautas mortos no espaço em 2003
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