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A pesquisadora Daniella Thompson

A pesquisadora Daniella Thompson

Darius Milhaud (1892-1974) ,compositor francês,foi um dos mais originais criadores musicais do século XX. Talvez tenha sido o mais prolifico autor de seu tempo, com quase 450 obras numeradas. De família judia, se interessou por todo o tipo possível de musica não europeia, inclusive o jazz e a musica popular brasileira. Perseguido pelos nazistas (além de judeu adorava jazz) morou muito tempo nos Estados Unidos. Isso explica ter tido discípulos tão diferentes como Stockhausen, Xenakis, Burt Bacarach, Philip Glass e Dave Brubeck.Ele morou no Rio de Janeiro de 1917 até 1919 atuando na antiga capital brasileira como secretário do então “ministro plenipotenciário” Paul Claudel, famoso escritor, irmão da famosa amante de Rodin, Camille Claudel. Curiosamente as obras mais tocadas de Milhaud tem alguma ligação com este período no Brasil. Vale a pena conhecer o excelente livro “O círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil” de Manoel Aranha Corrêa do Lago , que narra com detalhes a exaustiva atividade concertística do compositor em sua estada no nosso país , onde, junto a músicos brasileiros, apresentou primeiras audições nacionais de obras de Ravel e Debussy, além de diversas composições suas. Entre as obras mais conhecidas do compositor, que tiveram origem em sua estada no Brasil, está a suíte “Saudades do Brasil” (em versões para piano solo ou para orquestra) e o Ballet “Le boeuf sur le toit” ou em português “O Boi no telhado”. Esta obra foi completada na França logo após seu retorno à Europa. O enredo do ballet foi escrito por Jean Cocteau, e sua estreia parece ter sido bem sucedida. Como consequência um cabaret – restaurante abriu em Paris , em 1921, com o mesmo nome, frequentado pela elite artística da capital francesa. A obra mostra uma numerosa série de melodias intercalada com uma musica que se repete diversas vezes, formando um rondó. Durante muitos anos Milhaud fez segredo, e mesmo despistou sobre a origem dos temas.

Logicamente qualquer pessoa pensava que ele tinha se inspirado em algum “folclore” sul americano (meu professor francês,Michel Phillipot, falava de “sambinhas brasileiros”). Entre suas “despistadas” ele dizia que “tal tema veio de um tango português” ou coisa do gênero. Só muito recentemente é que “O boi no telhado” foi revelado ao mundo como uma colagem de obras com nome e autores. Todos eles brasileiros. Quem nos revelou a verdade sobre “O boi no telhado” foi a pesquisadora americana, apaixonada por musica brasileira, Daniella Thompson. Num site deslumbrante vemos tudo o que Milhaud tentou esconder. Inicialmente ela esclarece o porquê do titulo. “O boi no telhado” era o nome de um “tango” de autoria de Zé Boiadêro (!) que foi um grande sucesso no carnaval carioca de 1918 e que Milhaud cita em sua obra. Daniella Thompson enumera todos os compositores que Milhaud “tomou emprestado”. Existem alguns bem conhecidos como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Alexandre Levy. Mas 11 melodias, “emprestadas” por Milhaud eram obras de um só autor: Marcelo Tupinambá. Até mesmo um compositor mais erudito foi “emprestado”: Alberto Nepomuceno. Milhaud escondeu por toda a sua vida a origem dos temas por uma razão muito simples: medo de ter que pagar direito de autor aos compositores citados. Naquela época era muito discutida a divida financeira que Stravinsky contraiu com os herdeiros do compositor austríaco Joseph Lanner, pelo fato dele ter citado (e esculhambado), sem autorização, duas valsas de Lanner em seu ballet Petrushka.

A obra de Milhaud em si é muito interessante, extremamente bem humorada, e curiosamente, a única criação do autor, o tema do rondó, que aparece repetida vezes, é de longe o material musical menos interessante. Lindo reconhecer o “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga, “Apanhei-te cavaquinho” de Nazareth ou o “Tango Brasileiro” de Alexandre Levy no tecido bi-tonal e modernista de Milhaud.Não tenho a menor dúvida: Milhaud,mesmo escondendo suas “fontes”, amava a música brasileira.

A minha dúvida: por que “O boi no telhado” é uma obra tão pouco conhecida entre nós? Obra inúmeras vezes gravada, por regentes do nível de Dimitri Mitropoulos, Antal Dorati, Leonard Bernstein ,Daniel Harding e Ricardo Chailly, em suas dezenas de gravações encontramos atuações de orquestras americanas, inglesas, francesas,canadenses e tchecas. Mas não existe uma só gravação com orquestras e regentes brasileiros. Isso resulta numa falta impressionante de ginga, um autêntico tempero brasileiro. Sou dos poucos maestros brasileiros a reger esta partitura, e a recepção dos próprios músicos brasileiros parece ser extremamente fria.

Versão dos sonhos

Milhaud fez duas versões de “O boi no telhado”, além da versão original. Uma para dueto de pianos( muito bem gravada pelo pianista português Artur Pizarro e Stephen Coombs ) e uma para violino e orquestra. Vale a pena lembrar que nenhum violinista brasileiro tem esta obra em seu repertório. Aquela que classifico como “Versão dos sonhos” é a do violinista francês Renaud Capuçon com Die Deutsche Kammerphilharmonie Bremen regida por Daniel Harding em um CD da Virgin Classics . Vale a pena conferir. É a com mais “sotaque” brasileiro. Vale lembrar que a melhor gravação da versão original é ainda a de Leonard Bernstein

Achei no youtube uma versão completa da obra com a Orchestre national d’Île de France sob a regência de Christophe Mangou. Versão correta, impecável, mas infelizmente, sem o “tempero” brasileiro.

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