A situação da Venezuela parece piorar a cada dia. E é na Venezuela, muito antes de Hugo Chávez chegar ao poder, que se consolidou um sistema de educação musical que se tornou mundialmente célebre: “El Sistema”. Foi idealizado pelo músico e economista José Antonio Abreu. Milhares de crianças carentes tem, através deste programa, acesso à educação musical, e duas estrelas mundiais saíram dele: a Orquestra Jovem Simon Bolívar e o maestro Gustavo Dudamel, atual diretor musical da Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Hugo Chávez não mexeu no “El Sistema”, e a princípio tudo ocorria de forma bem apolítica. Ocorria. Numa recente entrevista de Dudamel à revista francesa Diapason ele saiu de cima do muro e fez altos elogios ao “chavismo”. Passados 39 anos da criação do “El Sistema”, apesar dos excelentes “cartões de visita” que citei, podemos perceber que centenas de bons instrumentistas estão desempregados ou sub empregados, e vivem num país à beira do caos, com altíssimos níveis de violência, de desabastecimento, e com uma inflação de quase 60%.
Se Gustavo Dudamel resolveu tornar pública sua adesão ao “chavismo” a pianista, também venezuelana, Gabriela Montero, tem se tornado nos últimos anos uma artista de fama internacional claramente oposta ao atual regime de seu país. Pianista de fama mundial, iniciou seus estudos dentro do “El Sistema”e foi uma das discípulas da argentina Martha Argerich. Tendo se apresentado aqui em Curitiba no ano passado, não resistiu a fazer um inflamado discurso sobre a situação da Venezuela, com direito a um bate-boca com um “simpatizante” de plantão. Sua carta aberta a José Antonio de Abreu e Gustavo Dudamel, divulgada ontem nos Estados Unidos, deixa clara uma postura que é rara entre os músicos ligados à música clássica. Ao contrário dos artistas ligados à música popular o músico dito erudito é reacionário por excelência, e pude assistir na minha vida excelentes colegas que mamaram nas tetas dos corruptos, artistas com tamanho alto nível que certamente não precisariam disso. A Carta de Gabriela Montero é interessante em mais de um aspecto, pois não só denuncia os horrores que se passaram na Venezuela ontem (veja matéria aqui), mas também clama por uma postura ética de nós músicos, além de questionar a formação de instrumentistas que serão entregues a um país violento e com uma economia cambaleante. Algo para se pensar, pois o mesmo pode vir a acontecer aqui, já que o governo brasileiro, que tem muita simpatia por tudo o que soa “bolivariano”, tem planos de implantar “El Sistema” aqui. Eis a carta em sua íntegra. Excelente texto para nossa reflexão. Lembro que ela cita José Maria Abreu e Gustavo Dudamel, a quem ao que parece a carta é endereçada. Ela cita também Christian Vázquez, outra estrela da regência saída do “El Sistema”.
A carta na íntegra
Eu acho que é chegado o tempo para que eu, artista Venezuelana, mulher e mãe, escreva uma carta a José Antonio Abreu e Gustavo Dudamel . Eu não tinha feito isso antes pelo fato de sentir carinho e respeito por Gustavo. Mas não posso ficar em silêncio por mais tempo. Ontem, enquanto dezenas de milhares de manifestantes pacíficos marcharam por toda a Venezuela para expressar sua frustração, dor e desespero pela completa destruição de seus valores morais, na total decadência econômica e cívica da Venezuela, e enquanto as milícias armadas do governo, da Guarda Nacional e da Polícia provocavam mortos, feridos, presos e muitas vítimas inocentes simplesmente desaparecidas, Gustavo e Christian Vázquez regiam a orquestra (a Orquestra jovem Simon Bolívar) em um concerto celebrando o Dia da Juventude e os 39 anos do nascimento de El Sistema . Eles realizaram um concerto, enquanto seu povo estava sendo massacrado.
Costumo fazer uma analogia com o (navio) Titanic. O quarteto que tocava no navio, percebendo a desgraça que se aproximava, afundou com o navio tocando sua música. A música não ajudou. A música não os salvou. A Venezuela está afundando e El Sistema vai afundar com ela. Nós chegamos num ponto sem volta. Música, ambição e fama são inúteis ao lado do sofrimento humano. Eles não significam nada quando existem feridos e mortos. Não há mais desculpas. Não existe lógica em dizer “Artistas estão acima do bem e do mal”. Não há mais sentido em dizer “Fazemos isso pelas crianças “. As 200.000 pessoas que foram assassinadas nos últimos 15 anos, devido à crescente violência e às ações opressoras do governo, importa mais do que qualquer instrumento, qualquer ideologia, qualquer profissão, qualquer soma de dinheiro, e qualquer auto satisfação pessoal ou fama. Essas mesmas crianças estão crescendo em um país que já não é um porto seguro para eles, e é responsabilidade dos líderes tornar clara a verdade da situação real do meu país. Eu amo os músicos do “El Sistema” . Muitos deles são meus amigos e isso não tem nada a ver com destruí-lo, mas os líderes têm o dever moral de falar e arriscar o que for necessário, a fim de se levantar contra essa ditadura que nos oprime.
A Venezuela está em chamas e vai continuar a queimar até que os cubanos, o governo e seus beneficiários desistam do poder. Quando peço (aos venezuelanos) que leiam as notícias elas simplesmente não existem. A manipulação do governo é tal que todos permanecem em silêncio, cegos e surdos.
Gabriela Montero
a resposta do Maestro Gustavo Dudamel pode ser lida aqui, em meu novo texto sobre o assunto
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