Violão: um instrumento complicado para se escrever
Quem não é violonista dificilmente escreve algo bom para o violão. As particularidades técnicas do instrumento tornam uma simples progressão harmônica que no piano seria banal em algo simplesmente impossível de se executar no violão. Eu o considero o instrumento mais “misterioso” e complexo para se escrever música. Alguns grandes compositores que não dominavam a técnica do violão tiveram que ser assessorados por um violonista, como por exemplo o compositor inglês Benjamin Britten, que ao escrever sua única composição para violão solo, “Nocturnal after John Dowland, Op. 70” (1963), foi extensivamente assessorado pelo virtuose inglês do violão Julian Brean. Mesmo o espanhol Manuel de Falla, ao escrever a sua única obra para violão solo, “Pour le tombeau de Claude Debussy” (1920), recebeu orientações técnicas de Miguel Llobet, um violonista catalão. Villa-Lobos não precisou disso. Violonista, mesmo que com recursos técnicos limitados, escreveu de maneira consistente e apropriada para o instrumento. Por dominar o instrumento pôde não só compor obras primas mas pôde ainda expandir os recursos e sonoridades do instrumento. A obra de Villa-Lobos, especialmente seus “Doze estudos para violão” (1925-1929), contribuíram de forma decisiva para colocar o violão como um instrumento importante na cena musical do século XX, afastando-o inclusive da onipresente relação com o universo espanhol. Villa-Lobos traz o violão para a modernidade, e através de ecos do folclore brasileiro o torna universal.
Peças escritas originalmente para violão solo: uma raridade
O repertório violonístico inclui uma enorme quantidade de transcrições. As obras de Bach executada no violão, por exemplo, foram originalmente escritas para alaúde. Os violonistas tocam com frequência Sonatas de Domenico Scarlatti, que foram escritas originalmente para cravo. Outras transcrições que frequentam regularmente os recitais de violão incluem diversas obras de autores românticos espanhóis como Granados e Albéniz, que foram escritas originalmente para piano. Obras originais para violão normalmente são criações de compositores menos importantes, como Francisco Tárrega (1852-1909), Fernando Sor (1778-1839) e Mauro Giuliani (1781-1829), todos violonistas. Villa-Lobos foi o primeiro compositor de um status mais elevado que, além de escrever extensa obra orquestral, pianística e camerística, legou uma considerável produção original para violão. Neste aspecto sua produção para violão solo tornou-se absolutamente obrigatória na formação de qualquer violonista em qualquer lugar do mundo. Um violonista sem tocar Villa-Lobos seria o mesmo que um organista não tocar Bach ou um pianista não tocar Chopin.
Estudos e Prelúdios: a origem harmônica da “Bossa nova”
Apesar de existirem peças curtas escritas no início da carreira agrupadas como “Suíte popular brasileira” e o “Choros Nº 1”, os dois itens mais importantes da produção para violão solo de Villa-Lobos são seus “12 estudos para violão” (1925-1929) e os “Cinco prelúdios para violão” (1940). Os estudos foram escritos na fase mais ousada do compositor, e apresentam conformações harmônicas e melódicas de profunda modernidade. São, na minha visão, as obras mais importantes para violão solo do século XX. Os Prelúdios já encontram um compositor mais “palatável”, resultado de seu encontro com o neoclassicismo, que produziram suas belíssimas Bachianas. Vale a pena ressaltar o problema das edições dos “Estudos”, pois há uma enorme divergência entre a partitura original revelada em 1991 e a edição publicada na França pela editora Max Eschig. Mas na essência a obra prima permanece intacta. Por terem sido escritas para violão, e o violão ser a base harmônica da “Bossa nova”, estas duas coletâneas de Villa-Lobos são as obras do mestre que mais influenciaram gênios da Música Popular Brasileira como Tom Jobim e João Gilberto.
Gravações e livros
As obras de violão de Villa-Lobos são o tema de dois livros que considero essenciais: de Marco Pereira: “Heitor Villa-Lobos: sua obra para violão” (Musimed, 1984) e de Turíbio Santos: “Heitor Villa-Lobos e o Violão” (Museu Villa-Lobos, 1975). A respeito das diferentes edições dos “Estudos” recomendo o excelente texto escrito pelo violonista e professor Orlando Fraga que pode ser lido na internet (http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/eventos/orlando.pdf). Quanto a gravações lembro com apreço da integral pioneira dos Estudos gravados por Maria Lívia São Marcos em 1975, que infelizmente já se encontra fora do catálogo. O grande violonista espanhol Andrés Segóvia (1908-1989), para quem Villa-Lobos dedicou os Estudos, nunca foi um entusiasta da obra, mas gravou alguns deles de forma notável. Além de gravações antológicas de Julian Brean e dos irmãos Assad, da impecável versão do finlandês Timo Korhonen e de uma surpreendente gravação dos “Prelúdios” do violonista paranaense Luiz Cláudio Ribas Ferreira saúdo a internacionalmente mais aclamada gravação da integral da obra para violão de Villa-Lobos, a realizada em 1997 por Fabio Zanon.
Villa-Lobos tocando o Prelúdio 1 para violão. Show de musicalidade e liberdades frente ao texto escrito.