A teologia é importante para a sociedade. Para os meus colegas dessa área, é dispensável dizer isso. Fora dela, porém, nem sempre nos damos conta desse dado. Tudo bem: basta nos determos por um minuto diante do panorama político atual, no Brasil e lá fora, e constataremos: narrativas teológicas estão por toda a parte.
Diante dos problemas que podem surgir quando instituições religiosas e a coisa pública se relacionam de modo promíscuo, muitos optaram pela recusa a tratar de religião no espaço público. As tradições e as experiências religiosas deveriam se delimitar ao âmbito estritamente privado. O problema é que, quando varremos a religião para baixo do tapete, ela volta como um monstro.
Há uma teologia no estatuto da Aliança pelo Brasil, o partido engendrado pela família Bolsonaro. O problema não é esse. O problema é: que teologia? Houve uma teologia subjacente à atividade de Martin Luther King Jr. no movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Houve uma teologia na raiz do trabalho de Teresa de Calcutá em favor dos que jaziam nas sarjetas. Há uma teologia por trás da luta de Denis Mukwege contra a violência sexual na República Democrática do Congo.
Quando varremos a religião para baixo do tapete, ela volta como um monstro
A teologia do estatuto da Aliança pelo Brasil não é grosseira. É refinada. Na letra, o partido reconhece “a justa autonomia da ordem política e da ordem religiosa” e propõe “uma sadia cooperação entre essas duas esferas” – admitindo, portanto, que há formas de cooperação que não são sadias. Mas podemos, é claro, duvidar de que essa autonomia de uma e de outra esfera será respeitada na prática, dado o histórico do presidente do partido – alguém que já defendeu um “Estado cristão” e afirmou que “as minorias têm que se curvar às maiorias”, do contrário que “se adequem ou simplesmente desapareçam”.
Da mesma maneira, não é preciso mencionar exemplos pontuais do discurso do presidente e de seus aliados que contrariam “a dignidade da pessoa humana”, que “advém do fato de todos os concidadãos brasileiros serem filhos de Deus, dotados por Ele de direitos inalienáveis”, como diz o estatuto. O desrespeito a essa dignidade é uma constante no imaginário bolsonarista.
No entanto, o que chama mais a atenção é o modo como o partido se legitima como um plano de Deus para o Brasil. A narrativa que o estatuto apresenta do período mais recente da história do país, durante a qual é mencionada a própria criação do partido, é apresentada como “o caminho que a Providência Divina vem, sucessivamente, atestando”.
E esta é a pior forma de promiscuidade entre a religião e a política – e não escolhe partido: quando um grupo político se vê como representante-executor-proprietário da vontade divina e vê os opositores como representantes do Mal, com maiúscula.
Quando a política se torna uma guerra santa, tudo se justifica. Não é à toa que C. S. Lewis dizia que “de todos os homens maus, os piores são os homens maus religiosos”. A sua maldade empresta a onipotência e a soberania do Deus em que acreditam.
Quando a política se torna uma guerra santa, tudo se justifica
Daí a importância de entender que varrer a religião para baixo do tapete não adianta: no interno das comunidades religiosas, longe da luz que o debate público é capaz de prover, pode acontecer de se ir gestando um projeto de poder construído sobre uma teologia tóxica. A religião não se enjaula: ela continua por aí e a história nos mostra que ela pode contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva, mas também pode legitimar a opressão e o totalitarismo. Por isso ela não é um fato privado.
Revestir um projeto político do absoluto de Deus é muito conveniente. Menos almejado tem sido traduzir para a linguagem necessariamente aberta de um projeto político – que sempre deve ser capaz de conversar com a sociedade toda, e não apenas com os adeptos de determinada confissão religiosa – uma imagem de Deus como compaixão e comunhão.
Se os cristãos – e falo como um – entendem que faz parte de sua missão o envolvimento com a política, como forma de contribuição com o bem comum, é necessário compreender isso a partir de uma coerência teológica tanto interna à própria fé quanto externa, isto é, na relação entre a tradição cristã e o contexto que nos cerca. Fazer da própria religião uma bandeira partidária, como esforço de demarcação de território e legitimação do direito de se impor sobre os outros, certamente não pertence a essa coerência.