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O presidente Jair Bolsonaro durante o ato de consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria. Foto: Marcos Corrêa/PR
O presidente Jair Bolsonaro durante o ato de consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria. Foto: Marcos Corrêa/PR| Foto:

O segundo mandamento – ou o terceiro, para algumas tradições protestantes – costuma receber menos atenção do que merece. Mesmo um pregador mediano consegue gastar horas falando sobre “não pecar contra a castidade” ou “honrar pai e mãe”, mas “não tomar seu santo nome em vão” parece dar pouco pano para a manga. E isso tem consequências na prática das comunidades cristãs e acaba ressoando na vida pública de um país.

Na terça (21), o Palácio do Planalto recebeu um “ato de consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria”, com a presença do presidente Jair Bolsonaro (PSL). A iniciativa foi liderada pela Frente Parlamentar Católica, representada pelo deputado federal Eros Biondini (PROS-MG), ligado à Renovação Carismática Católica. O conceito do ato está relacionado à devoção a Nossa Senhora de Fátima. Segue um breve cronograma:

Coincidentemente, o ato aconteceu três dias depois de um episódio semelhante na Itália. No sábado (18), o ministro do Interior Matteo Salvini, em um comício em Milão, pontilhou o seu discurso de citações de figuras católicas como G. K. Chesterton, João Paulo II e Bento XVI e concluiu, terço nas mãos, com a consagração da sua própria trajetória ao Imaculado Coração de Maria.

O objetivo do ato

Desde pelo menos a redação das memórias de Lúcia, em plena II Guerra Mundial, a devoção a Nossa Senhora de Fátima está fortemente associada ao anticomunismo, devido à menção aos “erros” que a Rússia “espalhará pelo mundo”. Não é nenhuma novidade, portanto, que retorne ao discurso de líderes políticos obcecados com o tema e que se entendem de alguma forma como defensores da tradição cristã – ou mesmo como escolhidos por Deus.

Biondini, é claro, lançou mão dessa narrativa ao propor o ato ao presidente. No ofício, ele escreve: “Dentre os pedidos que ela [Nossa Senhora de Fátima] fez para que o mundo se convertesse, ficasse livre das guerras e do comunismo, estava o da consagração dos países ao Imaculado Coração de Maria, através de seus presidentes. Portugal fez esse gesto, e atribuiu-se a isso o livramento desse país dos flagelos da guerra e do comunismo. A nossa intenção é que essa mesma ação aconteça no Brasil pelas mãos do nosso presidente”.

O mais curioso é que nem mesmo a doutrina oficial da Igreja Católica sobre Nossa Senhora de Fátima endossa a mentalidade por trás do evento.

Em um vídeo, o deputado complementa: “É um ato profético, porque o Brasil precisa de Deus, precisa de oração e precisa do cumprimento das promessas de Fátima de que, se consagrarmos a nossa nação ao Imaculado Coração de Maria, então as pragas, as guerras, os males saem, para que a bênção de Deus possa reinar no meio de nós”.

O texto da consagração, assinado pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Floriano Peixoto, e lido pelo bispo dom Fernando Rifan no fim do evento, reza: “Esperamos receber aquelas graças que a senhora já proporcionou a outros países que já se consagraram a vós: a prosperidade, o crescimento econômico e religioso, a vitória sobre toda ideologia materialista, a garantia da paz do país em seu interior e com as demais nações”.

O catolicismo fatimista

O ato de terça pode ser criticado a partir de diferentes pontos de partida. Mesmo desde a perspectiva religiosa, cristã e católica, podemos recorrer à premissa da separação entre a Igreja e o Estado, ao segundo mandamento (como farei adiante) e a vários outros expedientes para analisar o episódio. O mais curioso é que nem mesmo a doutrina oficial da Igreja Católica sobre Nossa Senhora de Fátima endossa a mentalidade por trás do evento.

O ensinamento do magistério católico sobre qualquer relato de aparições é muito cuidadoso. Já tratei do tema em outro texto, mas resumo o assunto aqui. O Catecismo da Igreja Católica afirma que as revelações privadas ligadas a aparições ou visões “não pertencem ao depósito da fé” nem têm o objetivo de “aperfeiçoar” ou “completar” aquela Revelação que se deu de modo definitivo em Cristo (n. 67).

Um papa do século XVIII, Bento XIV, dizia que às revelações privadas não se deve dar a mesma fé que colocamos em Deus e em sua Palavra, mas apenas, no máximo, “uma adesão de fé humana, ditada pelas regras da prudência”. O documento A mensagem de Fátima, que a Congregação para a Doutrina da Fé publicou no ano 2000, se atém a essa diretriz.

O documento afirma que a aprovação da Igreja a algumas dessas revelações não se refere à sua veracidade. A aprovação significa apenas “que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão”.

O comentário teológico que faz parte desse documento, redigido pelo então cardeal Joseph Ratzinger, se recusa a usar o termo “aparição”: ele fala de “visão”. Trata-se de uma “percepção interior”, condicionada pelas “capacidades concretas” e pelas “modalidades de representação e conhecimento” acessíveis ao “vidente”. “Tais visões não são em caso algum a ‘fotografia’ pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende”, explica o hoje papa emérito.

Nada mais distante desse posicionamento do magistério católico do que a exaltação que se vê em alguns grupos que comemoraram o ato de terça-feira e na própria maneira de Biondini justificar o ato. A centralidade que Fátima adquire na compreensão de fé desses grupos é tal que se pode muito bem falar de um fatimismo, mais que de um catolicismo. Para alguns, foi “o ato mais importante do governo Bolsonaro”. E se você quer uma razão para ser grato ao universo neste dia, agradeça por não fazer parte de todo um submundo católico em que o grande assunto das últimas 24 horas foi uma disputatio sobre a validade da consagração – há quem diga que ela não atendeu aos requisitos exigidos para efetivamente consagrar a pátria a Nossa Senhora, tendo sido apenas uma “homenagem”.

O segundo mandamento

O pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa – que entrevistei em dezembro passado – soube usar palavras precisas para questionar o apoio evangélico à candidatura de Bolsonaro. Ele reprova o que chama de “apoio acrítico, efusivo e institucional”. É uma crítica longe de todo partidarismo ou ideologia. O uso desses adjetivos como que diz: que o apoiem, vá lá. Mas é escandaloso que esse apoio seja dado de forma acrítica, efusiva e institucional.

Outro pastor, o batista Ed René Kivitz, tuitou no mesmo dia do ato: “Quando a igreja, qualquer que seja ela, e o governo, qualquer que seja ele, se amalgamam, duas coisas acontecem: o governo se torna tirano, pois equivocadamente se acredita legitimado por Deus, e a igreja se corrompe, porque caiu em tentação e traiu sua vocação”. O que os dois descrevem cabe muito bem também a certos setores da Igreja Católica.

O tuíte de Kivitz espelha a preocupação do segundo mandamento. Não é nada sábio concebê-lo meramente como uma proibição a usar expressões como “meu Deus”. A questão é outra: é a manipulação do nome de Deus. É a distorção do discurso religioso – distorção que costuma gerar opressão. Por isso esse é um assunto que interessa a todos, e não apenas a quem se define cristão. De certa forma, a noção por trás do segundo mandamento protege os que não creem da opressão daqueles que creem.

Não prostituir uma devoção religiosa para endossar um governo é um dos níveis mais básicos de levar em conta o segundo mandamento.

O segundo mandamento tem essa dimensão curiosa: entre os dez, é o que se dirige mais claramente de forma específica a quem crê. Se outros mandamentos moderam a sexualidade, a ambição e a ira, o segundo modera a religião. Ele sublinha que Deus não é uma posse dos religiosos: ele permanece sempre o mistério, não-domesticável, totalmente outro. Também a religião precisa ser redimida, se pretende controlar o mistério e colocá-lo a serviço de outros interesses.

Na exortação apostólica Gaudete et exsultate, de 2018, o Papa Francisco diz: “Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra que não está no bom caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a religião para seu benefício, ao serviço das próprias lucubrações psicológicas e mentais. Deus supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa (…). Quem quer tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus” (n. 41).

Não prostituir uma devoção religiosa para endossar um governo é um dos níveis mais básicos de levar em conta o segundo mandamento. Há outros, mais sutis, como não usar o discurso religioso para tornar a vida das pessoas mais pesada (alguns trabalhos de pastoral vocacional católica, por exemplo, ferem gravemente a vida de muitas pessoas com discursos que contrariam esse mandamento). Quanto ao ato de terça e à atmosfera que o cerca, nada de sutilezas: a submissão do discurso religioso a uma ideologia política é escrachada.

Se o apoio de um cristão a um governo como o de Bolsonaro é aberto à discussão, o apoio “acrítico, efusivo e institucional” – para usar as palavras de Costa – é inaceitável. É a morte de todo discernimento. Nem de longe é preciso ser de esquerda para reconhecer isso. Pelo contrário: o mesmo se aplica aos grupos que se colocaram de maneira acrítica, efusiva e institucional lado a lado com os governos petistas.

Para os cristãos, a fé tem sim implicações políticas – e não pode ser diferente, porque ela oferece uma determinada visão da dignidade humana. Mas há maneiras e maneiras de construir essa interação entre a experiência de fé e a esfera pública. Uma relação promíscua, em que a missão da Igreja é tão mal compreendida que se funde com os interesses – inclusive os mais infames – de um projeto de poder e que, além disso, toma como eixo uma devoção secundária para a própria doutrina que se professa – e numa chave de compreensão que beira a superstição e a “teologia da prosperidade” – não é a melhor maneira.

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