No final da década de 1930, o movimento ecumênico já caminhava a passos firmes. Fazia quase trinta anos que havia acontecido a Conferência Missionária Internacional de 1910, em Edimburgo, na Escócia, considerada o marco inicial do ecumenismo moderno – embora tivesse reunido apenas representantes do protestantismo. John Raleigh Mott, o metodista norte-americano que presidiu o evento, chegaria a receber o Nobel da Paz em 1946.
Da parte da Igreja Católica, começava a se difundir um novo modelo da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que havia surgido entre católicos norte-americanos em 1908. Em 1935, o padre francês Paul Couturier (1881-1953) passou a convidar cristãos não-católicos para as orações dessa semana – antes, o acontecimento reunia apenas católicos que pediam “o retorno dos hereges e cismáticos à Igreja de Roma”.
Paralelamente a isso, em 1937 o teólogo dominicano francês Yves Congar (1904-1995) publicou Cristãos desunidos: princípios de um ecumenismo católico – a obra é um marco na história do ecumenismo. Tudo isso apesar do balde de água fria que foi a encíclica Mortalium animos, que o papa Pio XI publicou em 1928. O documento proibiu os católicos de participarem de iniciativas ecumênicas e determinava como único caminho possível para a unidade dos cristãos “o retorno dos dissidentes à única Igreja de Cristo”, isto é, a Igreja Católica.
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Os anglicanos tinham lançado um Apelo a todo o povo cristão durante a Conferência de Lambeth* de 1920, que consolidou o compromisso ecumênico da Igreja Anglicana. No mesmo ano, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla publicou uma encíclica endereçada “a todas as Igrejas de Cristo”, sugerindo a criação de uma Liga de Igrejas. Em 1937, finalmente, líderes de várias igrejas concordaram em estabelecer um Conselho Mundial de Igrejas, fundindo duas organizações ecumênicas já existentes. A fundação do órgão, porém, só aconteceu após a II Guerra Mundial.
A guerra poderia, de fato, ter significado um grande hiato na história do ecumenismo. No entanto, ela acabou se constituindo como um de seus capítulos mais importantes. Se até ali o ecumenismo teve a força de mover líderes religiosos já inclinados a essa causa, a experiência da guerra despertou muitos daqueles que ainda eram indiferentes. Isso porque os campos de concentração foram os lugares em que muitos padres e pastores tiveram, pela primeira vez, a ocasião de conviver uns com os outros.
O Pavilhão dos Padres
Essa interação foi facilitada pela decisão do regime nazista de reunir todos os ministros religiosos encarcerados em um só lugar: o campo de concentração de Dachau, nas imediações de Munique. A partir de dezembro de 1940, os padres encarcerados por terem manifestado oposição ao nazismo foram reunidos nesse campo em uma seção denominada Pavilhão dos Padres.
Mais de 2,7 mil ministros religiosos passaram por Dachau durante a guerra, sendo 95% deles padres católicos. A partir de 1941, havia uma capela no pavilhão e os padres de nacionalidade alemã tinham permissão para celebrar a eucaristia. Não-clérigos eram proibidos de entrar na capela e atividades religiosas eram proibidas fora dela. Entre os outros 5% dos presos, havia mais de cem pastores luteranos e cerca de vinte padres ortodoxos.
Se até ali o ecumenismo teve a força de mover líderes religiosos já inclinados a essa causa, a experiência da guerra despertou muitos daqueles que ainda eram indiferentes.
“Dachau foi, nos desígnios da Providência, o berço do ecumenismo vivido em plenitude. Nunca antes na história do povo de Deus havia acontecido de tantos ministros de todas as confissões cristãs viverem unidos em uma comunidade de vida e sofrimento como no grande testemunho de Dachau”, escreveu o padre beneditino Maurus Münch, que esteve preso no campo e publicou em 1977 o livro Padres alemães em Dachau. “Em autêntica fraternidade e oração comum, pusemos os fundamentos para novas relações entre as diversas igrejas”.
Em Dachau e em outros campos, padres e pastores rezavam juntos, trocavam experiências e passavam a conhecer melhor a tradição de cada um. Em Dachau, por exemplo, a SOUC era celebrada como um momento em que os ministros de diferentes confissões expunham aos outros aspectos de sua própria denominação. Mais do que isso, através do convívio descobriam o rosto do outro como o de um irmão, não o de um inimigo.
Pastores protestantes chegaram até mesmo a ajudar a organizar uma ordenação presbiteral católica – um dos prisioneiros, o bispo francês Gabriel Piguet, se mostrou disposto a ordenar como presbítero o diácono Karl Leisner, outro detento. A ordenação ocorreu em dezembro de 1944, na capela do pavilhão. Leisner morreu poucos meses após a libertação de Dachau, de uma tuberculose diagnosticada anos antes, e foi beatificado em 1996 como mártir.
Misturados à escuta do Verbo
O pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, martirizado no campo de Flossenbürg em 1945, já era ativo no movimento ecumênico na década de 1930. A sua própria atuação contra o nazismo se deveu, em parte, a essa abertura, já que ele passou a se sensibilizar de maneira especial com o tema da injustiça racial durante os seus estudos em Nova York, entre 1930 e 1931, durante os quais frequentou uma igreja batista engajada no tema. Mas para um colega de Bonhoeffer na fundação da Igreja Confessante – um movimento de resistência protestante antinazista –, o caminho foi diferente.
O pastor Martin Niemöller (1892-1984) tinha uma inclinação nacionalista, chegando a comemorar a ascensão de Hitler em 1933, mas sendo preso por sua rebeldia contra o Führer quatro anos depois. No Natal de 1944, pela primeira vez os oficiais nazistas permitiram que ele conduzisse um pequeno serviço litúrgico em Dachau junto aos não-clérigos. Participaram seis cristãos: um calvinista holandês, dois luteranos noruegueses, um anglicano inglês e dois ortodoxos, um iugoslavo e outro macedônico.
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Essa experiência deu início a uma profunda mudança na forma de Niemöller enxergar o mundo. Ele passou a pensar o cristianismo como uma comunhão universal e não como uma aliança nacional alemã a partir do luteranismo. Libertado de Dachau no fim da guerra, ele reconheceu seu apoio a Hitler no início da ascensão do Führer, com um texto que ficou famoso: “Primeiro eles vieram atrás dos comunistas, mas não falei nada, porque eu não era comunista. Depois vieram atrás dos sindicalistas, mas não falei nada, porque eu não era sindicalista. Depois vieram atrás dos judeus, mas não falei nada, porque eu não era judeu. Depois vieram atrás de mim – e não havia sobrado ninguém para falar por mim”.
Já o filósofo católico francês Jean Guitton (1901-1999) foi prisioneiro de guerra no campo de Elsterhorst entre 1942 e 1943. Em seu diário, escreveu: “Achamo-nos aqui reunidos num grande encerramento, reduzidos à simples condição de homens dispostos a escutar a voz do Verbo interior. Católicos, protestantes, incrédulos cheios de nobres inquietudes, todos se viram misturados nos barracões. Logo, mergulhados naquela existência justaposta e sem nenhum resquício de solidão, puderam começar a falar dos próprios temas religiosos que a um só tempo os opunham e os harmonizavam”.
Experiências compartilhadas
Hoje no campo de concentração de Dachau há três capelas em memória das vítimas, uma católica (construída em 1960), uma luterana (1967) e uma ortodoxa (1995). Há também um mosteiro carmelita ao lado do campo. Com o fim da guerra, a experiência de fraternidade vivida nos campos confluiu com o trabalho teológico e de espiritualidade já em andamento.
“Nos campos de concentração, cristãos corajosos de diferentes igrejas descobriram que, em sua resistência contra um novo sistema de terror totalitarista pagão, eles tinham muito mais em comum do que aquilo que os dividia. Assim, o movimento ecumênico emergiu com toda a força na segunda metade do século XX”, afirmou o cardeal Walter Kasper, que presidiu o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos entre 2001 e 2010.
A unidade entre os cristãos não virá de um decreto, mas de experiências compartilhadas
Essa multiplicidade de experiências ecumênicas teve o seu efeito: em 1948, concretizou-se o Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça. No ano seguinte, durante o pontificado de Pio XII, a Santa Sé – através da instrução De motione oecumenica – reconheceu pela primeira vez o movimento ecumênico como um fruto da ação do Espírito Santo e permitiu expressamente que os católicos participassem de encontros com outros cristãos, ainda que continuasse a afirmar que a unidade requer o “retorno” dos dissidentes à Sé de Roma.
Isso mudaria apenas com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o decreto Unitatis redintegratio. Münch, aliás, o padre beneditino citado acima, esteve durante o concílio à frente de um centro de diálogos ecumênicos instalado pela sua abadia em Roma. Foi também nas circunstâncias da II Guerra Mundial que surgiram duas comunidades que marcaram a história do ecumenismo: o Movimento dos Focolares e a Comunidade de Taizé. Mas essa já é outra história.
Desde o começo de seu pontificado, o papa Francisco tem ressaltado a dimensão do “ecumenismo de sangue”, partindo da ideia de que “aqueles que perseguem Cristo nos seus fiéis não fazem diferenças de confissões: perseguem-nos simplesmente porque são cristãos!”, como disse em 2014. Em Roma, a Basílica de São Bartolomeu all’Isola é especialmente dedicada aos mártires dos séculos XX e XXI de todas as confissões cristãs. A convicção do cardeal Gerard Lacroix e do bispo anglicano Bruce Myers, que dividiram o mesmo teto por pouco mais de um ano, resume bem o horizonte do ecumenismo: para eles, a unidade entre os cristãos não virá de um decreto, mas de experiências compartilhadas.
- *A Conferência de Lambeth é uma assembleia de bispos da Comunhão Anglicana que acontece a cada dez anos. É considerada um dos quatro instrumentos de unidade da Comunhão Anglicana. O Lambeth Palace é a residência oficial do arcebispo da Cantuária, o primaz da Comunhão Anglicana.
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