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Felipe Koller

Felipe Koller

Intersecções entre religião e espaço público

João Paulo II

Democracia sem direitos humanos é relativismo e descamba para o totalitarismo

Para João Paulo II, a democracia se desvirtua se não reconhece a dignidade humana
Para João Paulo II, a democracia se desvirtua se não reconhece a dignidade humana. (Foto: Domínio público)

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Não que houvesse necessidade de mais um grifo num fato já sublinhado às pinceladas, mas a divulgação do vídeo da reunião ministerial confirma o que eu dizia na coluna anterior: que o cerne daquilo que Jair Bolsonaro tem em mente para o país é o caos e a morte. Parece uma expressão exagerada, mas se trata apenas da resposta que emerge quando você se pergunta o que há de constante nas suas propostas ao longo da sua vida pública. Você olha para o Bolsonaro dos anos 1990, o Bolsonaro dos anos 2000, o Bolsonaro em campanha para a presidência e o Bolsonaro no Planalto e vê o quê em comum?

Não é a defesa da vida, nem o livre mercado e menos ainda a exaltação dos valores cristãos. A constante da trajetória de Bolsonaro é a apologia da violência. Não se trata de um ou outro arroubo esporádico, mero fruto de um temperamento agressivo, mas da substância mesma do seu projeto de poder.

O Bolsonaro de 1999 defendia que o país só mudará “no dia em que partir para uma guerra civil”, “fazendo o trabalho que o regime militar não fez”, “matando uns 30 mil”. O Bolsonaro de 2003 dizia que “enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo”. O Bolsonaro de 2016 avaliou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. O Bolsonaro de 2018 prometeu promover “uma limpeza nunca vista na história do Brasil” e mandar a “petralhada” para a “ponta da praia” – como a ditadura militar chamava um local de desova de cadáveres no Rio de Janeiro.

E o Bolsonaro de 2020, sentado na cadeira da Presidência da República, em reunião com seu ministério? Deixa claro que quer “todo mundo armado” e cobra o ministro da Justiça que assine uma portaria, que de fato foi publicada no dia seguinte, que permite a um civil com posse ou porte de arma de fogo a compra de 550 unidades de munição por mês – antes de Bolsonaro assumir a Presidência, o limite era de 50 por ano.

E tudo isso porque – frase sua – “povo armado jamais será escravizado”? Para provar seu desprezo pela ditadura e seu amor pela democracia? Não. Não é difícil entender o que Bolsonaro chama de “democracia” quando usa esse termo positivamente. O Bolsonaro de 2014 dizia que “minoria tem que se calar, se curvar à maioria”. O de 2017 defendeu que “não tem essa historinha de Estado laico, não: o Estado é cristão e a minoria que for contra que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. O de 2019 se perguntou: “Se nós somos a maioria, por que cedermos à minoria?”

Segundo João Paulo II, é necessário que a democracia tenha como “autêntico e sólido fundamento” o “reconhecimento explícito dos direitos humanos”

É no mesmo sentido que Bolsonaro gosta de citar o trecho da Constituição que diz que “todo o poder emana do povo”. Ele foi eleito (diga-se de passagem, por 39% do eleitorado): logo, ele faz o que quiser. Por isso pode até dizer: “Eu sou a Constituição”. Daí não saber lidar com os outros dois Poderes nem com a imprensa, a não ser a partir de uma narrativa de perseguição ou de sabotagem. “Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”, disse ele, na manifestação que defendia um novo AI-5, semanas atrás. Ele é “a vontade do povo brasileiro”. A democracia consiste, portanto, em submissão a ele.

(Tudo isso é reforçado, ainda, pela narrativa de messianismo, alimentada por setores evangélicos e católicos e mistificada pelo episódio da facada. Assim, esse poder não emana só do povo, como do próprio Deus. Glória.)

É evidente que isso que Bolsonaro chama de “democracia” não é democracia. João Paulo II – este texto encerra uma trilogia que homenageia o centenário de nascimento do pontífice polonês destacando a atualidade do seu pensamento – já alertava para essa concepção equivocada de democracia. Trata-se de puro relativismo: a maioria impõe a sua vontade sobre a minoria, à margem de qualquer critério ético.

“É necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”, escreveu João Paulo II em 1991, na encíclica Centesimus annus. Segundo ele, é necessário que a democracia tenha como “autêntico e sólido fundamento” o “reconhecimento explícito dos direitos humanos”.

Em 1993, na encíclica Veritatis splendor, ele defendeu que “as normas morais universais” constituem “o fundamento inabalável e a sólida garantia de uma justa e pacífica convivência humana, e, portanto, de uma verdadeira democracia, que pode nascer e crescer apenas sobre a igualdade de todos os seus membros, irmanados nos direitos e deveres. Diante das normas morais que proíbem o mal intrínseco, não existem privilégios nem exceções para ninguém”. Para João Paulo II, esse “mal intrínseco” evidentemente não é apenas o aborto: é a tortura, o homicídio, o desprezo pela vida, a mentira, a desumanização do opositor, enfim, tudo aquilo que cospe na dignidade humana.

Dois anos depois, na encíclica Evangelium vitae, o papa especificou como valores “fundamentais e imprescindíveis” que a democracia precisa salvaguardar “a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis e a assunção do bem comum como fim e critério regulador da vida política”. Do contrário a democracia “se torna uma palavra vazia” e o relativismo “reina incontestado” – é quando “o próprio ‘direito’ deixa de sê-lo, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Desse modo e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo”.

Da mesma forma que “o povo” a que Bolsonaro costuma se referir, quando diz que “o povo” está ao seu lado, nem de longe corresponde à totalidade da população – e tampouco à maioria –, o “todo mundo armado” da reunião ministerial não é todo mundo. É quem pode comprar armas, quem tem tara por armas e quem está ávido para pegar em armas para defender seus próprios interesses (e nunca, é claro, o bem comum, como deixa claro o próprio exemplo que Bolsonaro oferece na reunião: “Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se estivesse armado, ia pra rua”).

O “todo mundo armado” da reunião ministerial não é todo mundo

Esse é o Brasil que Bolsonaro quer. Um Brasil (e essa situação é apenas um exemplo, uma pequena amostra) em que seus apoiadores, diante de medidas que pretendem proteger a população de uma pandemia que já matou mais de 25 mil brasileiros, enfrentassem armados governantes, forças de segurança pública e cidadãos favoráveis ao distanciamento social. Guerra civil. Que fique claro: nunca foi sobre legítima defesa.

E tudo isso é dito explicitamente, a portas abertas ou fechadas, há mais de 20 anos. Nunca foi um segredo. Não é, tampouco, mero palavrório: Bolsonaro se esforça para construir o clima para isso, atiçando sua militância, consentindo com a violência contra jornalistas e opositores e assinando medidas como a do aumento do limite de compra de munição.

Um militar pode encontrar sentido em sua missão de diversas formas. Poderia dizer que a sua especialidade é proteger. Ou servir. Quem sabe, defender. Bolsonaro, pelo contrário, tem muito orgulho de dizer: “A minha especialidade é matar”.

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