O patriarca Bartolomeu I, figura representativa do mundo ortodoxo, publicou neste domingo (1º) uma encíclica sobre o cuidado do meio ambiente. Não é nem de longe a primeira incursão do patriarca no tema.
Bartolomeu, de 79 anos, é patriarca ecumênico de Constantinopla desde 1991. Isso significa que ele é o bispo principal da Igreja de Constantinopla, uma das 14 igrejas autocéfalas que compõem o que chamamos comumente de Igreja Ortodoxa. Além disso, como chefe dessa igreja, que tem sede em Istambul e jurisdição sobre quase toda a Turquia e o norte da Grécia, ele é o líder espiritual de toda a comunhão ortodoxa, embora não tenha jurisdição sobre as outras igrejas.
A encíclica foi publicada para comemorar o 30º aniversário do estabelecimento do dia 1º de setembro – início do ano litúrgico ortodoxo – como Dia da Proteção do Meio Ambiente. A data foi fixada pelo predecessor de Bartolomeu, Demétrio I. Em 2015, a Igreja Católica passou a se unir à celebração da data, com o nome de Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação.
Na encíclica recém-publicada, Bartolomeu menciona três dimensões do engajamento ecológico dos cristãos, dando mais atenção à segunda: a cosmologia e a antropologia cristã, uma visão de mundo eucarística e o espírito de ascese. “O fundamento da preocupação inabalável da Igreja com o meio ambiente reside na sua identidade eclesiológica e em sua teologia”, afirma o patriarca. “O respeito e o cuidado pela criação são uma dimensão da nossa fé, o conteúdo da nossa vida na Igreja e como Igreja”.
Bartolomeu menciona três dimensões do engajamento ecológico dos cristãos: a cosmologia e a antropologia cristã, uma visão de mundo eucarística e o espírito de ascese
Bartolomeu vai além: “A própria vida da Igreja é uma ‘ecologia experimentada’, um respeito e um cuidado diligentes pela criação, e a fonte de suas atividades ambientais. Em essência, o interesse da Igreja pela proteção do meio ambiente é a extensão da santa eucaristia a todas as dimensões de sua relação com o mundo. A vida litúrgica da Igreja, o ethos ascético, o serviço pastoral, a experiência da cruz e da ressurreição pelos fiéis, o desejo inextinguível pela eternidade: tudo isso compreende uma comunhão de pessoas para as quais a realidade natural não pode ser reduzida a um objeto ou matéria útil para atender às necessidades de um indivíduo ou da humanidade; ao contrário, essa realidade é considerada um ato, uma obra das mãos de um Deus pessoal, que nos chama a respeitá-la e protegê-la, tornando-nos seus ‘colaboradores’, ‘administradores’, ‘guardiães’ e ‘sacerdotes’ da criação, a fim de cultivar uma relação eucarística com ela”.
Por isso, o patriarca considera o cuidado com o ambiente um “ministério litúrgico”, “uma expressão essencial da vida da Igreja”. Não se trata somente de despertar uma consciência ecológica ou de responder aos problemas ambientais, mas de “renovar toda a criação em Cristo, da mesma forma como isso se realiza e se experimenta na santa eucaristia”.
É uma leitura sobre a eucaristia que não estamos muito acostumados a fazer, mas que está no cerne da teologia eucarística. O pão e o vinho são primícias da criação, “fruto da terra e do trabalho humano” – como diz o rito da celebração eucarística na tradição romana – que é colocado diante de Deus para ser transfigurado em sua própria presença. Não como fim em si mesmo; não para limitar a presença de Deus, mas para estendê-la: para operar a transubstanciação do mundo em um mundo de vida – nas palavras de Bento XVI – ou, para ficar com São Paulo, até que “Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 28).
O patriarca considera o cuidado com o ambiente um “ministério litúrgico”, “uma expressão essencial da vida da Igreja”
“A crise ecológica revela que o nosso mundo compreende um todo integral, que os nossos problemas são globais e compartilhados”, ressalta o patriarca. A partir dessa visão orgânica, ele defende que “não é possível alcançar a solução para os grandes desafios do nosso mundo sem orientação espiritual”. “É inconcebível que a humanidade reconheça a severidade do problema e ainda assim continue se comportando como se ele não existisse”, afirma.
Aí aparece, sutilmente, o tema da ascese, isto é, da disciplina espiritual voltada à austeridade e à renúncia. Pela ascese, que não se identifica com a negação da alegria e sim com a afirmação da vida, a espiritualidade cristã contribui diretamente para um novo estilo de vida que saiba respeitar a criação e se oriente para o bem comum.
"Patriarca verde"
Bartolomeu trata a causa como prioridade desde que assumiu a cátedra de Constantinopla. Conhecido como o “patriarca verde”, ele chegou a ser laureado em 2002 com o Prêmio Sofia, um reconhecimento à sua defesa do desenvolvimento sustentável. Em 2006, esteve no Brasil para a sexta edição de um simpósio sobre religião, ciência e meio ambiente organizado pela Igreja Ortodoxa, que naquele ano teve como tema “Amazônia, fonte de vida”.
O papa Bento XVI chegou a enviar uma mensagem a Bartolomeu nessa ocasião, em que lamentava não poder estar presente, declarava sua adesão aos valores do simpósio e dizia esperar que o evento chamasse “uma vez mais a atenção dos povos e dos governos para os problemas, as necessidades e as urgências de uma região tão provada e tão ameaçada no seu equilíbrio ecológico”. Bento pediu ainda que todos os cristãos, unidos, possam “oferecer ao mundo um testemunho credível do seu sentido de responsabilidade pela salvaguarda da criação”.
Bento XVI fez com que o Vaticano se tornasse em 2007 o primeiro Estado do mundo a ter emissão zero de carbono
Aliás, anos antes de Francisco ficar com a fama pela publicação da encíclica Laudato si’ (2015), que aborda o “cuidado com a casa comum”, Bento já era chamado em alguns círculos de “papa verde”. Ele fez com que o Vaticano se tornasse em 2007 o primeiro Estado do mundo a ter emissão zero de carbono, graças à instalação de um sistema de energia fotovoltaica, à introdução de veículos híbridos e à plantação de uma floresta a fim de compensar o consumo de seus cerca de mil habitantes. Em 2011, em um discurso ao Parlamento alemão, Bento classificou o movimento ecológico como “um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem deixar de lado”.
Na Laudato si’, por sinal, o papa Francisco fez menção a textos de Bartolomeu sobre o cuidado do meio ambiente: “Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso é pecado”, afirmou o patriarca. Para ele, os cristãos são chamados a “aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta”.
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