Imagine um padre que tenha feito de sua paróquia a sede não-oficial de um sindicato de metalúrgicos. Em suas pregações, fala de justiça social, dos direitos dos trabalhadores, de liberdade e de paz, mandando o seu recado aos governantes. Defensor da não-violência na resistência ao autoritarismo, diz: “Não é suficiente para um cristão condenar o mal, a covardia, a mentira, o uso da força, o ódio e a opressão. O cristão precisa ser em todos os momentos testemunha e defensor da justiça, da bondade, da verdade, da liberdade e do amor. Ele nunca deve se cansar de reivindicar esses valores como direitos tanto para si quanto para os outros”. A mensagem fica ainda mais explícita nos momentos que antecedem as liturgias, em que ele dá espaço a artistas, poetas e cantores com seus refrãos subversivos.
Para muitas pessoas, esse é o retrato de um “padre comunista”, que não liga para o Evangelho e para a doutrina. Mas essas linhas descrevem Jerzy Popiełuszko, um padre polonês que alçava a voz justamente contra o regime comunista – e que acabou sendo assassinado por agentes do governo. Em 1984, quando tinha 37 anos, Popiełuszko foi sequestrado, espancado, amarrado, colocado dentro de um saco com pedras e arremessado nas águas de uma represa, ainda vivo. Ele foi beatificado por Bento XVI, como mártir, em 2010.
Era a partir da fé que Popiełuszko se posicionava firmemente em defesa dos direitos humanos e contra toda forma de autoritarismo. Mas se ele esteve sob a mira do regime soviético, Enrique Angelelli, Oscar Romero e Stanley Rother tomaram o partido dos mais vulneráveis em países que viviam ditaduras de direita – respectivamente Argentina, El Salvador e Guatemala. Acabaram, todos eles, assassinados e hoje são venerados como mártires pela Igreja Católica. Angelelli, aliás, foi beatificado no sábado (27), ao lado de Gabriel Longueville, Carlos de Dios Murias e Wenceslao Pedernera.
Não é absurdo supor que se Popiełuszko tivesse vivido na Argentina e Angelelli na Polônia, eles teriam agido da mesma forma e tido o mesmo destino, porque o que estava em jogo não era uma posição no espectro político, adotada por razões ideológicas, e sim a defesa da dignidade humana, que eles viam como uma exigência do Evangelho. A cor do autoritarismo não importava.
O que estava em jogo não era uma posição no espectro político, adotada por razões ideológicas, e sim a defesa da dignidade humana, que eles viam como uma exigência do Evangelho.
Isso é ainda mais curioso no caso dos padres Michał Tomaszek, Zbigniew Adam Strzałkowski e Alessandro Dordi, assassinados no Peru em 1991 e hoje venerados como beatos. Eles se posicionavam contra o governo de direita, mas acabaram mortos não por agentes ligados ao governo e sim por um grupo terrorista de extrema-esquerda, o Sendero Luminoso. Para a extrema-direita, eram terrucos – como chamavam os membros do Sendero e, pejorativamente, qualquer camponês que minimamente aparentasse ser do movimento. Para a extrema-esquerda, eram colonialistas e inimigos do povo.
A história da Igreja Católica – e mesmo das outras Igrejas cristãs – no século XX é repleta de figuras como essas. A lista de santos e beatos desse período inclui cristãos martirizados pelo totalitarismo nazista, fascista e comunista, por milícias de direita e de esquerda, pela máfia siciliana, pelo fundamentalismo islâmico, pelo narcotráfico, pelo machismo e pelo nacionalismo.
Muitas vezes eles fogem do estereótipo que se esperaria. Os mortos pelo fundamentalismo islâmico não eram católicos integristas, mas amantes do diálogo como Pierre Claverie, Christian de Chergé, Henri Vergés e, no século XXI, Jacques Hamel. Os mortos por guerrilhas de esquerda não eram obcecados pelo anticomunismo, mas exemplos de opção preferencial pelos pobres, como Jesús Emilio Jaramillo Monsalve e os já citados mártires do Peru.
Todos eles, homens e mulheres devotados à oração e íntimos conhecedores da tradição cristã. A partir dali e da sua proximidade com os mais vulneráveis – marca do agir cristão – discerniam os rumos de sua ação. Em meio à polarização, são, mesmo para quem não compartilha da sua fé, sinais de luz e de lucidez, de pé no chão e de fidelidade aos próprios princípios, de resistência e de abertura.
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