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Felipe Koller

Felipe Koller

Intersecções entre religião e espaço público

Rótulos e razões

O “anticomunismo” de João Paulo II era bem diferente desse que se vê por aí

João Paulo II era contra o comunismo, mas entendia o perigo do anticomunismo como ideologia
João Paulo II em visita a Bulgária em 2002. (Foto: Bigstock)

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Continuo refletindo sobre a situação política a que chegamos a partir do magistério de João Paulo II, cujo centenário de nascimento será lembrado no próximo dia 18. Na última coluna, apontei que houve quem visse em Jair Bolsonaro um candidato que representaria o que o papa polonês chamou de cultura da vida, apesar de o então deputado nunca ter manifestado outra coisa a não ser uma postura de desprezo pela dignidade da vida humana. Em nome de uma postura pró-vida degenerada em ideologia, disposta a engolir absurdo atrás de absurdo para defender um candidato que – em campanha – se disse contra o aborto e que abusa do nome de Deus o tempo todo, elegeu-se alguém que, diante de uma epidemia que já matou mais de 10 mil brasileiros, não se compadece, não conforta, não socorre, não age e não ora, mas marca churrasco, passeia de jet ski e ataca quem toma medidas minimamente responsáveis.

É evidente que não estou dizendo que Bolsonaro foi eleito majoritariamente pelas pessoas que o viram como alguém alinhado ao modo como o cristianismo defende a dignidade da vida humana. Houve quem confirmasse 17 querendo mesmo o caos e a morte – noções que são o centro do programa político de Bolsonaro de forma explícita, declarada, consistente e constante há pelo menos duas décadas. O que quero sublinhar é que, mesmo com todas as evidências à disposição, uma larga parcela de quem se afirma cristão e pró-vida fechou com Bolsonaro sem nem corar as bochechas, mas, pelo contrário, de maneira acrítica, entusiasta e submissa – o que arrepiaria os cabelos de grandes políticos cristãos do século passado, como Giorgio La Pira ou Hildegard Burjan.

Assim como a cultura da vida, a oposição da Igreja Católica ao totalitarismo comunista também serviu como pretexto para justificar e defender o voto em Bolsonaro. João Paulo II é muitas vezes lembrado como uma figura chave para a derrocada do comunismo no Leste Europeu. O que não se recorda com tanta frequência é que ele também alertou para o perigo de transformar a oposição ao comunismo em uma ideologia e considerou o militarismo um irmão gêmeo da luta de classes, quando esta alimenta o ódio e recorre à violência. À luz desses ensinamentos de João Paulo II, que encontram expressão em uma das principais encíclicas de seu pontificado, a Centesimus annus, apoiar o bolsonarismo “contra o comunismo” é dar força aos mesmos elementos que tornam o totalitarismo comunista reprovável – só que envoltos em uma embalagem diferente.

O bolsonarismo, enquanto mantém aquela visão paranoica que enxerga comunismo em qualquer lugar em que se fale de direitos humanos ou de justiça social, idolatra torturadores dignos de figurar entre os administradores de um gulag

Vejamos o que dizia João Paulo II nessa encíclica publicada em maio de 1991, que procurava analisar à luz da tradição cristã o novo cenário internacional desenhado pela queda do Muro de Berlim, ocorrida havia um ano e meio. O texto (n. 19) lista quatro modelos de sociedade que se consolidam após o fim da Segunda Guerra Mundial:

1) O “totalitarismo comunista”, que demonstra o fracasso da guerra. “A guerra, que deveria restituir a liberdade aos indivíduos e restaurar os direitos dos povos, terminou sem ter conseguido esses fins; pelo contrário, acabou de um modo que, para muitos povos, especialmente para aqueles que mais tinham sofrido, abertamente os contradiz”, escreve o papa.

2) Uma “sociedade democrática e inspirada na justiça social”, que procura “em geral preservar os mecanismos do livre mercado”, assegurando “as condições de um crescimento econômico estável e sadio”, mas ao mesmo tempo evita que “os mecanismos de mercado sejam o único termo de referência da vida associada”, submetendo-os “a um controle público que faça valer o princípio do destino comum dos bens da terra”. Esse modelo se caracteriza por “uma certa abundância de ofertas de trabalho, um sólido sistema de segurança social e de acesso profissional, a liberdade de associação e a ação incisiva dos sindicatos, a previdência em caso de desemprego e instrumentos de participação democrática na vida social”. Assim, “priva o comunismo de seu potencial revolucionário”, ao demover as camadas mais pobres da condição de exploradas e oprimidas.

3) Os “sistemas de ‘segurança nacional’”. São esses que, partindo da oposição ao marxismo, têm por objetivo “controlar de modo capilar toda a sociedade, para tornar impossível a infiltração marxista”. Ao tentar “preservar o seu povo do comunismo”, aparelhando o Estado, “correm o grave risco de destruir a liberdade e os valores da pessoa” – que são exatamente os motivos pelos quais, segundo o papa, deve-se rejeitar o totalitarismo comunista.

4) A “sociedade do bem-estar” ou “sociedade do consumo”, que procura mostrar “como uma sociedade de livre mercado pode conseguir uma satisfação mais plena das necessidades materiais humanas que a defendida pelo comunismo, e excluindo igualmente os valores espirituais”. Assim, “negando a existência autônoma e o valor da moral, do direito, da cultura e da religião”, esse modelo não oferece uma saída para o materialismo, que é precisamente o problema da ideologia comunista.

Desses quatro modelos, o único que não recebe críticas de João Paulo II na encíclica é o segundo. O terceiro e o quarto – que são exatamente as duas colunas do governo atual – são apresentados pelo papa em tom de denúncia. Para ele, são duas formas de dar um tiro no pé ao apoiar-se em um discurso anticomunista: condena-se o rótulo de comunista, mas se abre os braços aos elementos que justificam a oposição ao totalitarismo comunista. A liberdade e a dignidade da pessoa humana seguem pisoteadas e o materialismo permanece de pé. Como se vê, não é uma mera teoria: essa visão de João Paulo II se fez carne e habita entre nós.

O bolsonarismo, enquanto mantém aquela visão paranoica que enxerga comunismo em qualquer lugar em que se fale de direitos humanos ou de justiça social – como vai enxergar na presente coluna –, idolatra torturadores dignos de figurar entre os administradores de um gulag. Diante de pessoas perseguidas, torturadas e assassinadas pelo Estado, e de seus familiares, diz que “quem procura osso é cachorro” e que “na humanidade não para de morrer” (sic). E está longe, muito longe, de “submeter os mecanismos de mercado a um controle público que faça valer o princípio do destino comum dos bens da terra”, de tornar viável “um sólido sistema de segurança social” e de valorizar “a liberdade de associação e a ação incisiva dos sindicatos” – afinal, tudo isso é “comunismo”.

O principal é sair da superfície dos rótulos para identificar as razões que tornam esta ou aquela ideologia nociva, repudiando-as sob qualquer roupagem com que se apresentem

Vamos a outro ponto da Centesimus annus. João Paulo II se preocupa em esclarecer a posição da Igreja Católica a respeito da luta de classes (n. 14), que remonta à encíclica Rerum novarum, de Leão XIII – o texto de João Paulo II comemora o seu centenário. Esse ensinamento, diz ele, “não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social”. Pelo contrário, o conflito tem um papel positivo “quando se configura como luta pela justiça social”. “A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente”, escreve João Paulo II.

O que deve ser criticado, segundo o papa, é uma concepção de luta de classes “que se recusa a respeitar a dignidade da pessoa no outro” e que, em vez de se preocupar com o bem comum, preocupa-se apenas com “o interesse de uma parte” e “quer destruir o que quer que se oponha a ela”. Por outro lado, quando a luta de classes – e aqui João Paulo II cita Pio XI – “se abstém dos atos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça”. Recusar-se a reconhecer a dignidade do outro, desprezar o bem comum, desejar destruir os opositores, incentivar a violência e promover o ódio. Bingo!: são elementos sem os quais o bolsonarismo não é o que é.

João Paulo II considera a luta de classes em sentido negativo como uma “representação – no terreno do confronto interno entre os grupos sociais – da doutrina da ‘guerra total’”, típica do militarismo e do imperialismo da época de Leão XIII no cenário das relações internacionais. “Tal doutrina substituía a procura do justo equilíbrio entre os interesses das diversas nações pela prevalência absoluta da posição da própria parte, mediante a destruição da resistência da parte contrária – destruição realizada com todos os meios, sem excluir o uso da mentira, o terror contra os civis e as armas de extermínio”, escreve o papa.

Por isso, segundo João Paulo II, “luta de classes em sentido marxista e militarismo têm a mesma raiz: o ateísmo e o desprezo da pessoa humana, que fazem prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito”. É verdade que o militarismo de que se fala nesse trecho não equivale ao militarismo bolsonarista, já que se trata de uma ideologia que se concretizou em outro período histórico, no âmbito das relações internacionais. Porém, o principal aqui, como na questão anterior, é sair da superfície dos rótulos para identificar as razões que tornam esta ou aquela ideologia nociva, repudiando-as sob qualquer roupagem com que se apresentem.

“Fazer prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito” é uma descrição muito precisa daquilo que Bolsonaro sempre afirmou desejar, quando disse ser necessário terminar “um trabalho que o regime militar não fez”, “matando 30 mil” numa “guerra civil”; quando defendeu que “as minorias têm que se curvar às maiorias”, do contrário que “se adequem ou simplesmente desapareçam”; quando prometeu “uma limpeza nunca vista na história do Brasil”, mandando a “petralhada” para a “ponta da praia” – como a ditadura militar chamava um local de desova de cadáveres no Rio de Janeiro; e quando, há menos de um mês, participou de uma manifestação que pedia um novo AI-5, dizendo não querer negociar nada e gritando que “todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro” – vontade que ele, obviamente, identifica consigo mesmo, apenas pelo fato de ter sido eleito.

É significativo, ainda, que João Paulo II veja na origem da vontade de “fazer prevalecer o princípio da força sobre o da razão e do direito”, simultaneamente, “o ateísmo e o desprezo da pessoa humana”. Sim, porque para a concepção cristã o amor a Deus e o amor ao próximo são indissociáveis e o desprezo do próximo equivale, assim, a um ateísmo prático. Pode-se gritar “Deus acima de todos” o quanto se queira: se não há o reconhecimento da dignidade do outro, esse Deus não é o Pai de Jesus de Nazaré.

Os mesmos que defenderam com ameaças de excomunhão o voto em Bolsonaro “a favor da vida” e “contra o comunismo” – como se houvesse, aliás, alguma possibilidade mesmo que remota de uma ditadura comunista no Brasil atual – frequentemente exaltam a figura de João Paulo II como um contraponto à do Papa Francisco, considerado esquerdista demais para o gosto deles. Diante, porém, da Centesimus annus – e de muitas outras “suspeitas”, como a sua defesa da reforma agrária, da proteção ao meio ambiente, do desarmamento e do fim da pena de morte, por exemplo –, não há espaço para dúvidas: se vivesse hoje, João Paulo II certamente figuraria nas listas de comunistas denunciados pelos bolsonaristas.

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