No início do mês, o papa Francisco concluiu sua 30ª viagem apostólica. Do Brasil, o primeiro país que visitou após ser eleito, em 2013, à Romênia, seu último destino, foram 44 países visitados até agora. O perfil das visitas, se já se esboçava no começo do pontificado, no sétimo ano está mais do que claro: Francisco tem duas grandes prioridades, a América Latina e os países em que o catolicismo é uma minoria. E essas duas prioridades surgem da mesma pergunta: como traduzir a tradição cristã em uma experiência significativa hoje?
Vamos começar com um breve histórico (se não estiver a fim, passe para o próximo intertítulo). Paulo VI (papa de 1963 a 1978) foi quem inaugurou o hábito pontifício de visitar outros países. Antes dele, a última viagem internacional de um papa tinha sido a ida forçada de Pio VII à França como prisioneiro de Napoleão, entre 1809 e 1813. Alguns anos antes, em 1804, ele tinha também ido a Paris para a coroação do imperador – algo atípico.
A ideia de que uma das tarefas do papa é viajar a outros países simplesmente não existia antes de Paulo VI, em parte por causa das dificuldades técnicas, mas principalmente pelo modo como se concebia a sua função. Na esteira do Concílio Vaticano II, Paulo VI remodelou o exercício do papado, dando a ele um caráter mais pastoral, evangelizador e missionário.
A ideia de que uma das tarefas do papa é viajar a outros países simplesmente não existia antes de Paulo VI
Ele foi o primeiro papa da história a sair da Europa e esteve em todos os continentes. A primeira viagem, em 1964, foi para a terra das origens do cristianismo e compreendeu Israel e a Jordânia. No mesmo ano, visitou a Índia. Em 1965, esteve nos Estados Unidos, onde discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas. Entre 1967 e 1969, visitou Portugal, Turquia, Colômbia, Suíça e Uganda. Finalmente, fez uma grande viagem em 1970, com nove paradas: Irã, Paquistão, Filipinas, Samoa Americana, Samoa Ocidental, Austrália, Indonésia, Hong Kong e Sri Lanka (na época, Ceilão).
Paulo VI foi sucedido por João Paulo I, cujo pontificado durou apenas 33 dias. Seu sucessor, João Paulo II (papa de 1978 a 2005), foi o pontífice que mais viajou em toda a história: visitou 129 países em 104 viagens. Ele foi o primeiro pontífice a visitar o Brasil, em quatro ocasiões: 1980, 1982 (apenas uma escala no Galeão em uma viagem com destino a Buenos Aires, mas com direito a um discurso), 1991 e 1997. Graças às suas viagens, João Paulo II é, com toda a probabilidade, o ser humano que foi visto pessoalmente por mais pessoas em toda a história.
Bento XVI visitou 25 países distribuídos em 25 viagens – sem contar uma visita à Suíça, durante suas férias em 2006. O seu foco foi, explicitamente, a Europa Ocidental: só na Espanha e na Alemanha ele esteve três vezes, além de ter visitado a Áustria, a França, Malta, Portugal, o Reino Unido e San Marino, bem como alguns países da Europa Oriental – a Polônia, a República Tcheca e a Croácia. Bento não esteve em nenhum país asiático fora do Oriente Médio, fez apenas duas viagens à África e, na América, visitou apenas os três países mais populosos – incluindo o Brasil, em 2007 –, além de Cuba.
O perfil das viagens de Francisco
Francisco, ao contrário, mal pisou nos países da Europa Ocidental desde que foi eleito. Esteve apenas em Portugal em 2017 e na Irlanda em 2018, além de uma visita de quatro horas – a mais curta viagem papal internacional da história – à França em 2014, com o único intuito de discursar no Parlamento Europeu e no Conselho da Europa, em Estrasburgo, e de uma de dez horas à Suíça em 2018, para um encontro do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra.
Por outro lado, as “periferias” da Europa são vistas por ele como prioridade: Francisco visitou a Bósnia e Herzegovina (2015), a Armênia (2016), a Polônia (2016), a Geórgia e o Azerbaijão (2016), a Suécia (2016), a Estônia, a Letônia e a Lituânia (2018), a Bulgária e a Macedônia do Norte (2019) e a Romênia (2019). Esteve também na Grécia (2016), embora o único objetivo da viagem tenha sido visitar um campo de refugiados em Lesbos.
O mesmo grau de prioridade vale para a Ásia: ele esteve em Israel, na Jordânia e na Palestina (2014), na Coreia do Sul (2014), na Turquia (2014), no Sri Lanka e nas Filipinas (2015), em Mianmar e em Bangladesh (2017) e nos Emirados Árabes Unidos (2019).
O que há em comum entre esses países “preferidos” de Francisco, no Leste Europeu e na Ásia? Em quase todos eles, o catolicismo é uma minoria – e, frequentemente, uma minoria bem pequena.
Dos 44 países em que ele esteve, 28 (63,6%) não são majoritariamente católicos (entre parênteses, a porcentagem de católicos): Albânia (10%), Armênia (1%), Azerbaijão (0,03%), Bangladesh (0,07%), Bósnia e Herzegovina (15%), Bulgária (0,5%), República Centro-Africana (25%), Egito (0,1%), Estônia (0,3%), Geórgia (0,8%), Grécia (0,4%), Israel (1,2%), Jordânia (0,4%), Quênia (22%), Coreia do Sul (11%), Letônia (19%), Marrocos (0,07%), Mianmar (1,1%), Macedônia do Norte (1%), Palestina (2%), Romênia (4,7%), Sri Lanka (6,1%), Suécia (1,8%), Suíça (37,2%), Turquia (0,05%), Uganda (39,3%), Emirados Árabes Unidos (5%), Estados Unidos (22%).
Em 40,9% dos países visitados por Francisco, os católicos não são mais do que 5% da população
Os países que devem receber Francisco até o fim de 2019 têm as mesmas características: em setembro, o papa vai a Moçambique (28,4%), Madagascar (29,5%) e Maurício (23,6%) – a viagem pode ainda incluir o Sudão do Sul (30%) – e, em novembro, ao Japão (0,3%).
Como você pode ver, em 18 daqueles 28 países os católicos não passam de 5% da população total. Bento XVI visitou apenas cinco países que se enquadram na mesma situação. O resultado percentual é que em 40,9% dos países visitados por Francisco, os católicos não são mais do que 5% da população, contra 20% dos países visitados por Bento.
Em 10 desses 28 países a religião de maior expressividade é o islã: Albânia (70%), Azerbaijão (93%), Bangladesh (83%), Bósnia e Herzegovina (40%), Egito (90%), Jordânia (92%), Marrocos (98,7%), Turquia (99,8%), Emirados Árabes Unidos (96%) e Palestina (97,6%). Bento XVI esteve em apenas quatro países muçulmanos, sendo que três estão também na lista de Francisco. Dois dos 28 são budistas, o Sri Lanka (69%) e o Mianmar (88%).
Outros seis países visitados por Francisco são de maioria cristã ortodoxa: Armênia (94,7%), Bulgária (82,6%), Geórgia (83,9%), Grécia (98%), Macedônia do Norte (69,6%) e Romênia (81%). O único país majoritariamente ortodoxo visitado por Bento XVI foi o Chipre.
É interessante lembrar que existem dois eventos católicos trienais que, na prática, “obrigam” o papa a viajar para o país que os sedia: a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e o Encontro Mundial das Famílias (EMF). Embora seja o papa quem bata o martelo do país-sede, a decisão depende das candidaturas apresentadas e das condições dos países de receberem eventos desse porte. Cinco dos países visitados por Francisco entram nessa conta: Brasil, Polônia e Panamá, para a JMJ, e Estados Unidos e Irlanda, para o EMF.
Por que as periferias do mundo católico?
No voo de retorno de sua primeira viagem ao exterior, Francisco deu a entender que seu programa de viagens continuaria de onde seu predecessor parou. “Bento XVI não teve tempo de ir à Ásia, e isso é importante”, exemplificou. Isso explica o perfil das viagens de Francisco, mas apenas em parte, dado que ele já visitou 11 dos 25 países em que Bento esteve.
A maioria desses 11 países, porém, ou se encaixa naquele âmbito das viagens obrigatórias que mencionei acima (JMJ e EMF) ou se dá por algum outro tipo de “inevitabilidade”: caso de Portugal, pelos 100 anos da devoção a Nossa Senhora de Fátima, e de Israel, Palestina e Jordânia. Excetuando-se esses casos e o da França – já que não houve uma visita à nação em si, e sim ao Conselho da Europa e ao Parlamento Europeu –, esse número de 11 países repetidos cai para três.
As opções de viagem de Francisco se explicam melhor por outra razão: a sua visão a respeito das periferias. “Normalmente, nós nos movemos em espaços que de alguma maneira controlamos. Esse é o centro. Mas, à medida que vamos saindo do centro, vamos descobrindo mais coisas. E quando olhamos o centro desde essas novas coisas que descobrimos, desde as novas posições, desde essa periferia, vemos que a realidade é diferente”, explicou o papa em uma entrevista a um jornal popular de uma favela argentina em 2015. “Vê-se a realidade melhor da periferia do que do centro”.
Na mesma entrevista, o papa deu um exemplo: “Pode-se ter um pensamento bem estruturado, mas quando se confronta com alguém que está fora desse pensamento de alguma maneira tem que buscar as razões do seu pensamento, começa a discutir, se enriquece a partir da periferia do pensamento do outro”.
“Vê-se a realidade melhor da periferia do que do centro”, diz Francisco
Justamente por isso, Francisco entende que a comunidade católica de países onde o catolicismo é minoritário tem muito a ensinar a um Ocidente inteiro cada vez mais secularizado. São comunidades que já aprenderam a se situar em um contexto de pluralidade religiosa e que estão longe da tentação de se afirmar como um poder temporal.
Em alguns sentidos são, portanto, mais conformes ao modelo de comunidade cristã que aparece em alguns trechos dos Evangelhos: são diminutas como o fermento na massa (Mt 13, 33), como o sal na comida (Mt 5, 13), como um pequeno rebanho (Lc 12, 32). São limitadas, desprovidas de recursos polpudos e por isso a sua atuação se dá mais desde baixo do que desde cima – ao contrário do que ainda acontece em países que, mesmo mais secularizados hoje do que há algumas décadas, têm um histórico de predominância católica.
No Marrocos, em março de 2019, Francisco desenvolveu um pouco o tema: “Os cristãos são em reduzido número, neste país. A meu ver, porém, isto não é um problema, embora reconheça que às vezes, para alguns, se possa tornar difícil viver”, disse. “De fato, Jesus não nos escolheu nem enviou para que nos tornássemos os mais numerosos! Chamou-nos para uma missão. Colocou-nos no meio da sociedade como aquela pequena porção de fermento: o fermento das bem-aventuranças e do amor fraterno, no qual todos, como cristãos, podemos nos unir para tornar presente o seu Reino”.
O papa continuou: “O problema não está no fato de ser pouco numerosos, mas de ser insignificantes”. Ser significativos, porém, não quer dizer conquistar papéis de destaque para dar visibilidade a uma agenda. Além de sempre sublinhar a recusa a qualquer forma de proselitismo, Francisco deixou claro que “a preocupação surge quando nós, cristãos, somos atormentados pelo pensamento de que só seremos significativos se constituirmos a massa e ocuparmos todos os espaços”. Apontou ainda a “fantasia” de acreditar que “as coisas seriam diferentes, se fôssemos fortes, se fôssemos poderosos ou influentes”.
Em 2013, na exortação apostólica Evangelii gaudium, ele já havia exposto a sua visão de que o caminho adequado está em iniciar processos que rumem à construção da plenitude humana e não em ocupar espaços de poder.
No Mianmar, em 2017, Francisco também falou sobre o tipo de “influência” que o cristão deve exercer na sociedade: “Não tenham medo, se às vezes vocês notarem que são poucos e dispersos aqui e ali. O Evangelho cresce sempre a partir de pequenas raízes. Por isso, façam-se ouvir! Gostaria de pedir a vocês que gritem, mas não com a voz; gostaria que gritassem com a vida, com o coração, de modo a ser sinais de esperança para quem está desanimado, uma mão estendida para quem está doente, um sorriso acolhedor para quem é estrangeiro, um apoio carinhoso para quem está sozinho”.
Uma lição difícil
Com mais experiência em ser minoria, as Igrejas das periferias podem ser mestras das Igrejas do Ocidente, inclusive daquelas da outra prioridade de Francisco, a América Latina – a região mais católica do mundo. Bento XVI havia visitado apenas o Brasil, Cuba e o México. Francisco foi aos três (2013, 2015 e 2016) e também à Bolívia, ao Equador e ao Paraguai (2015), à Colômbia (2017), ao Chile e ao Peru (2018) e ao Panamá (2019).
O mesmo se diga da Europa de Bento XVI. Evidentemente, não há problema nenhum no fato de ele ter focado as viagens do seu pontificado no continente. Bento – que, quem sabe, tenha sido o último papa europeu em muito tempo – se sentia particularmente responsável por reforçar os laços da Europa com a sua identidade cristã. Francisco, embora tenha preterido o continente em suas viagens, também tem uma atuação forte no tema da identidade da Europa – ele foi, inclusive, laureado em 2016 com o Prêmio Internacional Carlos Magno, uma distinção conferida desde 1950 a defensores da integração europeia.
Com mais experiência em ser minoria, as Igrejas das periferias podem ser mestras das Igrejas do Ocidente
Fato é que tanto o catolicismo europeu quanto o latino-americano ainda estão aprendendo a lidar com uma situação em que são apenas mais uma opção entre outras, e não a condição padrão dos cidadãos desses países nem um grupo a quem é dada a voz de modo privilegiado. Essa nova situação obriga o catolicismo a repensar a sua identidade e a questionar a própria pertinência.
Não é de descartar que o próprio Francisco, latino-americano, se dedique a visitar países de minoria católica para, pessoalmente, aprender com a sua experiência. O catolicismo teve o status de religião oficial em boa parte do Ocidente basicamente do ano 380 até o século passado. Não é segredo para ninguém que frequentemente esse status prejudicou tanto a sociedade como um todo quanto a própria Igreja. É difícil reaprender a ser periferia – mas é crucial para que a Igreja Católica contribua de modo positivo às sociedades em que se faz presente e seja mais fiel ao estilo daquele a quem diz seguir.
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