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Amoêdo acha que a desigualdade não importa. Importa, sim

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil (Foto: )

João Amoêdo, candidato a presidente pelo Novo, costuma dizer que vai combater a pobreza e não necessariamente a desigualdade. Porque “somos, felizmente, diferentes por natureza”. Para ele, o combate à pobreza se faz com geração de renda, não com sua distribuição.

Em entrevistas, o presidenciável dá a entender que a desigualdade nem é exatamente um problema. “Você acha que se a gente resolver a desigualdade no Brasil é bom?”, perguntou ele a uma jornalista da “Folha de S.Paulo”. “Vamos pedir para todo mundo que tenha acima de uma determinada quantidade de dinheiro mudar a sua cidadania e ir morar fora do Brasil. Pronto. Resolveu a desigualdade”, propôs, irônico.

O discurso de que a desigualdade importa menos não é exatamente novo. Parece partir da premissa de que todos largam do mesmo ponto, nas mesmas condições, e que a partir daí ganham os mais capazes, os mais dedicados. A desigualdade, portanto, seria mero reflexo do esforço de cada um, uma espécie de efeito colateral do sucesso dos vencedores. Prova disso estaria no fato de que algumas pessoas nascem na pobreza mas conseguem superar as adversidades, ao passo que outras continuam na pobreza.

Nessa linha, Amoêdo gosta de exaltar a “boa desigualdade”, supostamente aquela que nasce do trabalho e da inovação, em contraposição à “má desigualdade”, quando alguém enriquece por causa de “privilégios que tem junto aos poderosos”.

Presidenciável mais rico, com patrimônio declarado de R$ 425 milhões, Amoêdo provavelmente relaciona sua fortuna a essa “boa desigualdade”. Ele fez sua parte, afinal. Cursou duas faculdades ao mesmo tempo, foi aprovado no programa de trainees do Citibank e depois construiu uma longa e sólida carreira no mercado financeiro, que culminou em cargos de direção na financeira Fináustria e no Unibanco e no conselho do banco de investimentos Itaú BBA.

Ocorre que, agora, Amoêdo pretende presidir o Brasil. Um dos países mais desiguais no mundo, onde o grupo 1% mais rico da população concentra 28% da renda nacional, e os 10% mais ricos levam quase 56% do total.

Não há dados que comprovem que essa desigualdade toda seja do tipo “boa”, ou que resulte meramente do fato de sermos diferentes uns dos outros. E mais: o Estado – esse mesmo que Amoêdo quer liderar – é um grande gerador de desigualdades e de obstáculos às pessoas que querem progredir.

Por isso, a desigualdade no Brasil é, sim, um problema. Ao mesmo tempo em que enfrentamos a pobreza, precisamos rever a forma generosa como os mais ricos são tratados por nosso regime tributário, pela educação pública, pelo sistema de aposentadorias, todos concentradores de renda.

E aqui há um detalhe curioso. Embora não pretenda mexer na tributação dos mais ricos, o programa de governo de Amoêdo tem propostas que, se implantadas, vão atacar algumas das causas da desigualdade. Mas, por algum motivo, ele prefere manter o discurso “meritocrático”. Chegaremos lá.

A pobreza no Brasil é persistente. A riqueza, também

Se nossa desigualdade fosse “boa” ou fruto das diferenças entre uns e outros, não seria persistente como é. Por aqui, as famílias pobres passam gerações na pobreza. E as ricas, na riqueza. Segundo um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil são necessárias nove gerações para que os descendentes de um brasileiro que está entre os 10% mais pobres alcancem a renda média do país. Na média dos 30 países avaliados, esse movimento demora cerca de cinco gerações. Apenas a Colômbia tem menos mobilidade social que o Brasil.

Nosso país tem o que a OCDE chamou de “pisos pegajosos”: apenas 7% das pessoas que têm pais entre os 20% mais pobres conseguem chegar ao grupo dos 20% mais ricos. Os tetos também são pegajosos, mostra o estudo: só 7% dos filhos dos mais ricos fazem o movimento contrário.

Em resumo: muito do futuro da criança é determinado pelas condições da família em que ela nasceu. O que não é questão de mérito, e sim de sorte, observa o doutor em Economia Naércio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, num artigo recente intitulado “A loteria da vida”. Citando dados do IBGE, ele diz que a possibilidade de uma criança filha de analfabetos concluir o ensino superior é de 3%. Se os pais cursaram a faculdade, por outro lado, a chance vai a 71%.

Daí que seis em cada dez brasileiros acreditam que o esforço não é suficiente para que alguém nascido na pobreza alcance um padrão de vida confortável, conforme o estudo da OCDE. E 55% acham que a educação não basta para garantir oportunidades iguais a ricos e pobres. Todo esse desalento realimenta o ciclo da desigualdade. Fica mais difícil quebrá-lo.

“A falta de mobilidade ascendente implica que muitos talentos são perdidos, o que prejudica o crescimento econômico potencial. Também reduz a satisfação com a vida, o bem-estar e a coesão social”, afirma a OCDE em seu estudo. (E não é nenhuma célula comunista quem está falando. A OCDE reúne 37 países, a maioria desenvolvidos, que aceitam os princípios da democracia e da economia de mercado).

Como o Estado pune os pobres e facilita para os mais ricos

Como diz Menezes Filho, do Insper, tudo começa na infância. E tem muito a ver com a educação. O Brasil é um país em que os filhos dos mais ricos fazem o ensino básico na rede particular (em geral, melhor que a rede pública) e depois vão para a universidade pública (em geral, melhor que a particular). Os filhos dos mais pobres costumam fazer o oposto. E onde o setor público investe mais? Justamente no ensino superior: os dados mais recentes do Ministério da Educação mostram que, em 2014, os governos gastavam em média R$ 21.875 por estudante universitário e R$ 5.935 por aluno do ensino básico.

A promoção da desigualdade pelo Estado não para aí. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal, mostrou que o setor público é culpado por pelo menos um terço da desigualdade – e essa responsabilidade tende a ser ainda maior, pois o trabalho não conseguiu medir o impacto dos impostos indiretos, que pesam mais sobre os mais pobres. Essa “contribuição” do Estado, proporcionalmente maior que a do setor privado, vem quase toda dos salários pagos ao funcionalismo e da Previdência dos servidores públicos.

“Os salários e benefícios dos funcionários públicos são muito mais concentrados e têm uma contribuição marginal para a desigualdade maior que no setor privado”, apontam os pesquisadores Marcelo Medeiros e Pedro Souza. No caso da Previdência dos servidores, o problema está nos benefícios mais altos. “O grupo dos funcionários públicos cujas aposentadorias e pensões excedem o teto representa menos de 5% dos beneficiários, mas se apropria de quase 20% dos recursos distribuídos pela Previdência. Por causa disso, as aposentadorias e pensões dos servidores públicos são extremamente concentradas.”

A folha de pagamentos do setor público é bancada pelo conjunto dos contribuintes, assim como o rombo da Previdência. E aí chegamos a outro problema: a forma como o governo arrecada o dinheiro que vai cobrir essas e outras despesas. Ao contrário do que ocorre no mundo desenvolvido, no Brasil os impostos são concentrados sobre o consumo e não sobre a renda. Com isso, pesam proporcionalmente mais sobre os mais pobres (que gastam tudo o que ganham com despesas do dia a dia) e menos sobre os ricos.

Uma forma de enfrentar essa questão é tributar menos o consumo e mais a renda. Em especial determinados tipos de renda. Alguém consegue explicar por que um assalariado tem de ser mais tributado que um profissional liberal ou alguém que receba lucros e dividendos? Implantada por aqui em 1995, a isenção de lucros e dividendos é coisa muito nossa, praticamente uma tomada de três pinos. Dentre os países da OCDE, só a Estônia faz o mesmo. Todos os demais tributam o lucro em duas fases: primeiro na empresa e depois, havendo distribuição de lucros, no acionista.

A mão leve do Estado com a parte de cima da pirâmide atinge seu ápice na concessão de crédito a juros subsidiados para empresas e nas desonerações tributárias. No ano passado, o governo federal abriu mão de R$ 355 bilhões – o equivalente a 5,4% do PIB, ou mais de um quarto da arrecadação – na forma de subsídios e renúncias fiscais. Que beneficiaram, basicamente, empresários e pessoas que estão da classe média para cima, sem comprovação de que esse incentivo dê retorno, porque o governo não avalia os resultados desses programas.

O que Amoêdo propõe. E o que deixa de lado

Como dissemos antes, o programa de Amoêdo reconhece e propõe respostas a boa parte desses problemas. Aponta que o Estado dá auxílios para quem menos precisa, benefícios para quem menos merece e tributa quem mais trabalha. Fala em dar prioridade ao ensino básico na alocação de recursos federais, com atenção especial à educação infantil. Em cortar privilégios e rever desonerações fiscais. Em uma Previdência com regras iguais para funcionários públicos e privados. Hoje há poucas condições políticas para executar qualquer dessas propostas. Mas se dispor a enfrentá-las é um bom primeiro passo.

Falta, no entanto, dar atenção à tributação do andar de cima. Não se defende, aqui, o confisco daquilo que empresários conquistaram por mérito próprio. E sim uma tributação justa para ricos, pobres e remediados, de acordo com a capacidade contributiva de cada um.

Amoêdo e o Novo dizem buscar uma sociedade livre e próspera, “que valorize o sucesso e não o vitimismo”. Levar a sério a desigualdade deveria ser uma premissa para isso.

Baseado no trabalho dos pesquisadores Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, o infográfico abaixo mostra como a isenção de imposto sobre lucros e dividendos alivia a tributação dos mais ricos. E quanto o governo poderia arrecadar (em valores de 2013) se mudasse essa regra.

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