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Como passar na perícia do INSS. E o que isso diz sobre o Brasil

Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo (Foto: )

Quem busca conteúdos de Previdência Social na internet talvez já tenha se deparado com a proliferação de textos e vídeos que ensinam a “passar na perícia do INSS”. Há alguns bem específicos, voltados a quem tem depressão, hérnia de disco, tendinite e outros males.

Passar na perícia, nesse caso, significa ser declarado inapto para o trabalho. E assim obter ou manter um benefício por incapacidade, como auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.

A popularidade desse tipo de conteúdo diz muito sobre a situação em que nos metemos.

Dicas vão dos documentos ao comportamento

Boa parte desses materiais é preparada por especialistas em Direito Previdenciário. Em geral eles orientam o trabalhador a seguir o protocolo: levar exames, prontuários e atestados, responder só o que for perguntado etc. Mas alguns também dão dicas de comportamento: o segurado não deve “valorizar” a doença nem usar equipamentos de que não necessite, como muletas e cadeiras de rodas.

As orientações para quem sofre de depressão estão entre as que fogem do convencional. “Seja sóbrio, seja sóbria. Piercing, jamais”, alerta um advogado. “Quem usa piercing tem autoestima elevada. E autoestima elevada é incompatível com depressão, tristeza, vontade de partir para o além”, explica.

“Médico tende a ser muito visual. Você vai com óculos, ray-ban, joias, perfumada, batom, irradiando alegria? É claro que ele vai indeferir seu benefício. Porte-se de acordo com o problema que você tem”, sugere outro especialista.

Pente-fino elevou interesse pelo assunto

O interesse pela questão das perícias cresceu com o governo Temer. No segundo semestre de 2016, a Previdência Social começou a passar um pente-fino sobre os benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. Desde então, 791 mil casos já foram revisados, e a meta é verificar outros 766 mil até o fim do ano.

O que o INSS tem feito é convocar beneficiários para checar se eles continuam incapacitados para o trabalho. Caso o exame mostre que a pessoa se recuperou, o benefício é cancelado. Esse tipo de revisão é um dever do instituto. Pelo regulamento, as aposentadorias por invalidez têm de ser reavaliadas a cada dois anos.

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Até 2016, no entanto, não havia um calendário regular de revisões. Por um motivo simples: a demanda cotidiana é grande e o número de servidores para dar conta dela, abaixo do ideal. Assim, o INSS dá prioridade à avaliação de novos benefícios, e não à revisão dos existentes. O pente-fino só foi possível porque o governo está pagando um extra para os médicos que toparam participar do mutirão.

Os resultados do programa chamam atenção. Das 360 mil aposentadorias por invalidez revisadas nesses dois anos, 30% foram canceladas. O mesmo ocorreu com 79% dos 432 mil auxílios-doença reavaliados.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a economia para os cofres públicos beira os R$ 10 bilhões. Para comparar: no ano passado, o déficit do INSS – coberto com recursos do contribuinte – foi de R$ 183 bilhões.

A culpa é do trabalhador?

Se o trabalhador está mesmo incapacitado e os exames são feitos corretamente pelo INSS, em tese ninguém precisaria, digamos, estudar para passar no teste. Mas é claro que há algo de muito errado nesse processo – e desde muito antes do pente-fino.

De um lado, há quem culpe o trabalhador. O discurso, nesse caso, é de que muita gente finge ou exagera doença para “se encostar” no INSS e garantir renda sem trabalhar. As regras da aposentadoria por invalidez seriam um estímulo a esse comportamento. O segurado precisa ter contribuído à Previdência por apenas um ano – ou nem isso, se o caso for de acidente ou doença do trabalho – e tem direito à aposentadoria integral, além de um acréscimo de 25% se precisar de ajuda permanente de terceiros.

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Alguns dos casos detectados no pente-fino, relatados pelo MDS, têm fortes indícios de má-fé. Um homem que usou cadeira de rodas por seis meses conseguiu na Justiça a aposentadoria por invalidez, e a recebeu por dez anos até a perícia constatar que ele caminha normalmente. Outro recebia o benefício desde 2010 por ter dermatite. Havia ainda um aposentado por invalidez, supostamente cego, que havia acabado de renovar a carteira de motorista.

Os números dessa modalidade parecem mesmo fugir do normal. Cerca de 3,5 milhões de brasileiros são aposentados por invalidez, o equivalente a 17% do total de aposentadorias pagas pelo INSS. O normal para um país como o Brasil seria um índice próximo de 10%, segundo o consultor legislativo da Câmara Leonardo Rolim, que foi secretário de Políticas de Previdência Social.

A culpa é da Previdência?

De outro lado, há quem diga que a culpa é da Previdência. Segundo essa hipótese, o INSS, para economizar, pressiona seus servidores – em especial os médicos peritos – a negar benefícios por incapacidade. Com isso, gente que realmente não pode trabalhar fica sem o auxílio e sem renda. Em alguns casos, à beira da miséria.

Essa percepção está presente nos materiais mais críticos sobre as perícias, alguns feitos por trabalhadores que passaram por uma. As queixas são de que os exames são breves, que o médico mal conversa e nem sequer encosta no paciente. Fala-se em arbitrariedade, insensibilidade. “O perito não está ali para se interessar pelo seu problema. E sim preencher o formulário com seus dados, tirar foto dos laudos, jogar no sistema e indeferir seu pedido”, diz a autora de um vídeo.

Você talvez já tenha ouvido relatos sobre as provações por que trabalhadores passam em busca do benefício. Para ficar num exemplo recente: semanas atrás a RPC TV, de Curitiba, mostrou o caso de uma senhora que, paralisada e presa a uma maca após quatro AVCs, teve negado o pedido para ser periciada em casa, um direito de pessoas nessa condição. A filha precisou levá-la de ambulância ao INSS, numa via-crúcis que exigiu a passagem por duas agências do instituto. Naquele dia, depois da perícia e horas de vaivéns, a mulher sofreu um novo AVC, segundo a filha.

A falta de pessoal é uma das razões por trás da precariedade do atendimento. O INSS tem 33,4 mil funcionários e diz que precisa de outros 16,5 mil para normalizar as coisas. Num estudo em que alertou o Ministério do Planejamento sobre a iminência de um colapso no atendimento, o instituto avisou que, de suas 1.613 agências, 321 têm pelo menos metade do quadro de funcionários em condições de se aposentar. O atendimento ao público foi encerrado em algumas unidades, que agora só têm expediente interno. Faz sentido transferir parte da burocracia para a internet, como o INSS tem feito, mas há situações em que não há como dispensar o atendimento presencial.

Os problemas não param por aí. Mesmo quando o Estado garante o benefício a quem precisa, depois é incapaz de recuperar os doentes ou acidentados. Dos trabalhadores que os peritos consideram elegíveis para reabilitação, só 5% são efetivamente reabilitados. Isso ajuda a explicar por que há tantos aposentados por invalidez.

“Em certas causas de aposentadoria é pouco provável que o segurado se reabilite (…) Todavia, há um número considerável de pessoas se aposentam por invalidez bastante jovens por problemas mentais ou doenças neurológicas ou ortopédicas em que há uma boa probabilidade de reabilitação”, apontaram as consultorias de Orçamento do Congresso num estudo publicado em 2015.

Segurados buscam benefício na Justiça

Nesse estado de coisas, é natural que os segurados busquem na Justiça o benefício que – com razão ou não – foi negado pelo INSS. Boa parte dos benefícios por incapacidade são concedidos por decisão judicial, e há casos em que o juiz amplia por conta própria a lista de doenças que dão direito a auxílio ou aposentadoria.

Até nisso pesam as limitações de pessoal do instituto. Segundo Leonardo Rolim, ex-secretário de Políticas de Previdência Social, o INSS ganha mais de 90% das ações na Justiça quando o médico perito comparece à audiência. E perde mais de 90% quando ele não vai. E por que os médicos raramente vão? Porque estão ocupados, fazendo perícias.

O pente-fino, claro, engrossou a fila do benefício na Justiça. A quantidade de ações para contestar decisões do instituto disparou e, com ela, cresceu a necessidade de perícias judiciais para verificar a situação dos segurados.

Em dois anos, o número de exames encomendados por juízes aumentou 46%, conforme reportagem de Flávia Pierry nesta Gazeta. O orçamento de 2018 para as perícias judiciais deve acabar ainda neste mês, o que vai interromper o andamento de milhares de processos. Ruim para quem tenta fraudar o benefício. Pior para quem de fato precisa dele.

E por enquanto não há, nos fatos ou nos programas dos candidatos a presidente, razões para acreditar em melhora nesse quadro caótico feito de esperteza e omissão.

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