Com a tabela do Imposto de Renda defasada, inflação eleva carga tributária do contribuinte há dez anos. E o peso do IR continuará subindo para quem foi excluído das novas regras.| Foto: Ilustração/Gazeta do Povo com DALL-E
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Se aprovada como o governo propôs, a reforma do Imposto de Renda vai reduzir a tributação de parte da classe média, em troca de aumento na taxação de quem ganha acima de R$ 50 mil ao mês. Dez milhões de declarantes passam a ser isentos e 141 mil terão de pagar algo a mais, diz o Ministério da Fazenda.

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Essa combinação – renúncia fiscal de um lado, arrecadação maior de outro – levou o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad a garantirem que o pacote será neutro em termos fiscais. Que não vai elevar nem diminuir a carga tributária total.

O que nem um nem outro contaram é que haverá, sim, aumento de imposto para muita gente que não é exatamente "rica" ou "super-rica".

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Na verdade, a tributação da renda já vem subindo, de forma dissimulada, há uma década. A novidade é que, com a tabela especial proposta pelo governo, a maioria dos contribuintes notará uma redução de 2026 em diante, graças a isenção ou desconto no IR.

Mas quem ganha acima de R$ 7 mil por mês não terá nada disso. Para esse contribuinte, valerá a tabela de sempre. Aquela que, à exceção de pequenos ajustes na faixa isenta, não é atualizada desde abril de 2015 – e continuará sem correção.

Em vez de ter isenção até R$ 5 mil e algum desconto até R$ 7 mil, o público que não foi contemplado pela bondade governamental seguirá com parcela isenta inferior a R$ 2,3 mil e alíquotas crescentes sobre o restante, incluindo o teto de 27,5% para o que superar R$ 4,7 mil, em valores arredondados.

Por causa do "congelamento" dos últimos dez anos, pessoas que não tiveram qualquer aumento no poder aquisitivo estão pagando mais imposto. Ainda que no papel a alíquota continue a mesma, na prática o Leão morde parcela cada vez maior da renda.

E como isso acontece? Digamos que o Leão voa nas asas do dragão – aquele, da inflação.

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Imagine um empregado com carteira assinada que em abril de 2015 recebeu salário bruto de R$ 5 mil. Feito o desconto da Previdência (então de 11% sobre um teto de R$ 4.664), o rendimento líquido – sobre o qual é calculado o IR – ficou em R$ 4.487. Mais de 40% desse valor era isento, e sobre o restante incidiam alíquotas de até 22,5%. Naquele mês, o trabalhador deixou cerca de R$ 373 com o Fisco.

Agora imagine que ele foi recebendo reajustes salariais equivalentes à inflação. Só o repasse do índice oficial, sem aumento real. Já no ano seguinte, mesmo sem ganho no poder de compra, parte da renda passou a ser submetida à maior alíquota, de 27,5%. Com o tempo, fração crescente do salário foi sendo tributada pelo teto.

Hoje, março de 2025, o rendimento bruto desse empregado é de R$ 8.547. Após o desconto da Previdência (agora de 14% sobre um teto de R$ 8.157), o líquido é de R$ 7.404. Cerca de 37% desse saldo está sujeito à alíquota máxima de IR. A parcela isenta não chega a um terço. Resultado: o imposto come R$ 1.140 por mês.

Nesse exemplo, o salário bruto subiu 71% em dez anos, apenas acompanhando a inflação. O rendimento líquido cresceu menos (65%), porque a contribuição à Previdência aumentou. Mas o desconto do Imposto de Renda triplicou. E como o rendimento líquido passa de R$ 7 mil, esse contribuinte não terá alívio após a reforma do IR.

Quanta gente ficou de fora das novas regras? Não há dados atualizados, mas, com base nos "grandes números" da declaração de 2023, podemos supor que são pelo menos 6 milhões de declarantes do Imposto de Renda. Trata-se de uma aproximação que leva em conta o número de pessoas com renda líquida entre cinco e 30 salários mínimos. Elas não terão direito a redução de IR e, no discurso oficial, também não sofrerão aumento.

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Parte desse público já é a que paga as maiores alíquotas efetivas de Imposto de Renda. Diferentes estudos (como este de 2023, do Sindifisco) mostram que a carga do IR aumenta progressivamente até o grupo que ganha até 20 salários mínimos. Dali para cima, a alíquota efetiva diminui, porque a maior parte da renda começa a vir de fontes isentas, como os dividendos.

Tabela do Imposto de Renda tem defasagem de 155% desde 1996

O congelamento da tabela ajuda a explicar por que a arrecadação do Imposto de Renda da Pessoa Física avançou 53% acima da inflação desde 2015, bem acima do crescimento total da arrecadação federal (35%).

A defasagem das faixas do IR não é invenção deste governo. Fernando Henrique Cardoso passou seis anos sem atualizá-las. Lula, em seus primeiros mandatos, promoveu ajustes abaixo da inflação. Dilma também. Temer e Bolsonaro não fizeram qualquer correção.

Segundo o Sindifisco Nacional, que representa auditores-fiscais da Receita, as faixas do IR acumulam defasagem média de 155% desde 1996, quando os reajustes deixaram de ser automáticos.

O contribuinte que declara IR pelo modelo simplificado recebe um desconto padrão de 20% na base de cálculo. Mas o limite anual desse abatimento (R$ 16.754) é o mesmo há dez anos.

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Quem opta pelo modelo completo tem direito a algumas deduções. Mas elas também estão congeladas: os descontos permitidos por dependente (R$ 2.275) e com despesas de educação (R$ 3.561) são os mesmos de 2015. A exceção são os gastos com saúde, que não têm limite de dedução.

Em vez de atualizar toda a tabela e os descontos, Lula escolheu concentrar o benefício em quem já paga menos Imposto de Renda.

Foi um cálculo econômico e político. Esse público tem maior propensão ao consumo e, portanto, tende a converter em PIB muito do que economizar em imposto. Ao mesmo tempo, é um grupo numeroso, que pode garantir algum dividendo ao presidente quando as novas regras começarem a valer – bem no ano da eleição presidencial.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]