O governo federal não tem dinheiro, e isso impõe escolhas difíceis. Há que se gastar com muito critério, dentro do que permitem as amarras do Orçamento e as restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal e do teto de gastos.
Uma das escolhas de Jair Bolsonaro e seus ministros foi fechar a porta de entrada do Bolsa Família.
O governo passou a barrar a entrada no programa a partir de junho de 2019. Seis meses depois, o número de famílias recebendo o auxílio – 13,1 milhões – era o menor em oito anos. A base de dados do governo indica que hoje 1,5 milhão de famílias pobres ou miseráveis – cerca de 3,5 milhões de pessoas – estão na fila de espera pelo benefício, revelou “O Estado de S. Paulo”.
Tudo isso em meio ao avanço da extrema pobreza, uma das heranças da recessão. Quem está dando conta de ajudar essas pessoas, com cestas básicas e outros auxílios, são as alquebradas prefeituras, numa possível versão do “Mais Brasil, menos Brasília” que Bolsonaro tanto apregoa.
A atitude do governo federal é daquelas que, no popular, chamamos de economia burra*. Uma negligência mesquinha que vai além de deliberadamente negar condições mínimas de sobrevivência a 3,5 milhões de brasileiros. O dinheiro que o governo poupa ao barrar essas pessoas faz falta numa economia que mal sai do lugar e apenas começa a manifestar os sintomas do coronavírus.
O Bolsa Família, vale lembrar, é reconhecido – inclusive por economistas liberais – como um dos melhores programas de transferência de renda do mundo. É barato: paga em média R$ 190 por família (menos de um quinto do salário mínimo) e custa 0,45% do PIB, enquanto benefícios fiscais de retorno desconhecido ou questionável, dirigidos em sua maioria a empresas e a pessoas de classe média ou alta, consomem 4,1% do PIB. Também é bem focalizado: a grande maioria dos beneficiários está, de fato, nas camadas mais pobres da população.
Como a propensão ao consumo dessas pessoas é muito maior, pois qualquer renda extra é imediatamente gasta em bens essenciais, o chamado “efeito multiplicador” do Bolsa Família é muito superior ao dos demais pagamentos feitos pelo Tesouro. A cada R$ 1 a mais alocado no programa, a atividade econômica aumenta em R$ 1,78, segundo estudo do Ipea. Uma excelente alternativa, portanto, para dar algum ânimo à economia.
No ano passado, os pagamentos do Bolsa Família consumiram R$ 32,9 bilhões. Ampliar o orçamento do programa em 15%, o que seria suficiente para incluir quem está na fila de espera, custaria pouco menos de R$ 5 bilhões. É metade do dinheiro que, no apagar das luzes de 2019 e por “decisão política”, o governo depositou nas estatais Emgepron, Telebras e Infraero.
Margem para ampliar o Bolsa Família – indo além do 13º pagamento anual** – havia. Em 2019 o governo cumpriu a regra do teto de gastos com folga de R$ 33,9 bilhões (mais que o orçamento inteiro do BF), e o déficit primário foi R$ 44 bilhões inferior ao projetado. Negar o benefício a milhões de brasileiros, portanto, foi uma escolha do governo.
O ministro Paulo Guedes talvez não faça ideia da diferença que R$ 190 por mês fazem na vida de quem está na miséria ou à beira dela. Semanas atrás, chegou a dizer que o governo pensa, sim, nos mais humildes e que os juros baixos favorecem os mais pobres – o que na verdade só ocorre muito indiretamente, uma vez que estes não têm acesso a crédito. Além disso, o impacto da taxa Selic (o juro básico) sobre a economia tem sido insignificante: desde setembro de 2016, ela caiu de 14,25% para 4,25% ao ano, e mesmo assim o PIB anual não cresce muito mais que 1% desde então. Isso tem muito a ver com o fato de que, para o consumidor, as taxas médias continuam acima de 30% ao ano.
Questionados sobre a fraqueza do PIB e o enfrentamento do coronavírus e da guerra de preços do petróleo, Paulo Guedes e equipe limitam-se a bater na tecla das reformas – que, embora necessárias, também não terão efeito digno de nota tão cedo.
Pior. Enquanto mantém vigilância severa sobre a entrada do Bolsa Família, o governo continua descuidando da relação com o Congresso. Em mais um cochilo da articulação política, permitiu que parlamentares derrubassem um veto do presidente e promulgassem lei que amplia o acesso ao Benefício de Prestação Continuada.
O custo, de mais de R$ 20 bilhões por ano, pode levar a máquina pública à paralisia, o que pioraria o acesso da população aos serviços públicos. Além de comprovar mais uma vez a incompetência do governo na condução de seus interesses, a derrubada do veto mostra que o Congresso está longe de ser um "resolvedor" de problemas criados pelo Planalto, como quis parecer em alguns momentos.
Mesquinho com o Bolsa Família, o governo corre o risco – se não conseguir reverter a decisão do Congresso – de gastar muito mais com um programa que não tem o mesmo foco nos mais pobres e faz menos pela atividade econômica.
Em comparação ao Bolsa Família, o BPC chega a muito menos brasileiros (cerca de 4,5 milhões) e custa quase o dobro, pois paga um salário mínimo (R$ 1.045) por beneficiário. No ano passado, consumiu R$ 59,7 bilhões, ou 0,82% do PIB. Um orçamento que, com a decisão do Congresso, crescerá em cerca de um terço.
Segundo o mesmo estudo do Ipea citado acima, o efeito multiplicador do BPC na economia é de 1,19. Assim, cada R$ 1 a mais no programa eleva a atividade econômica em R$ 1,19. O multiplicador do Bolsa Família, vale lembrar, é estimado em 1,78.
*Essa burrice tem precedentes nos governos do PT e de Temer, que em diferentes momentos deixaram a fila de espera crescer, privando milhões de pessoas do Bolsa Família, ou congelaram o valor do benefício por anos, deixando-o ser corroído pela inflação. Os dois últimos reajustes, em 2016 e 2018, não foram suficientes para recompor a inflação acumulada de 2014 para cá.
**Promessa de campanha de Jair Bolsonaro, o 13.º foi pago em 2019 – mas para uma população menor, pois o governo cortou beneficiários do Bolsa Família. Além disso, boa parte do dinheiro veio do que o governo poupou ao prejudicar outras pessoas, atrasando a concessão de aposentadorias, pensões e outros benefícios do INSS.
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