O governo opera uma usina de negócios estranhos e bilionários que tendem a ser bancados pelo povo, em benefício de interesses privados, políticos e mesmo internacionais. Ela funciona no Ministério de Minas e Energia (MME), a menos de um quilômetro do Palácio do Planalto. Nenhum dos acordos costurados pela pasta sofreu censura pública do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao contrário: o ministro Alexandre Silveira é dos mais prestigiados, até porque muito do que diz e faz vai ao encontro dos interesses do chefe do Executivo.
O ministro tem dito que o Brasil está perto de um "colapso tarifário" na área de energia. Correto. Somos o país da energia barata (na hora de gerar) e da tarifa cara (na hora de pagar), tamanhas as distorções do setor elétrico. A questão é que iniciativas do governo contribuem para agravar a situação.
A mais recente, envolvendo a Eletrobras, é exemplo do esmero de Silveira em atender às vontades de Lula, qualquer que seja o custo.
O presidente cultiva a obsessão de controlar a companhia, privatizada em 2022. Ele entende que o setor elétrico só funciona se dominado pelo governo.
Lula recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra a lei de privatização, que transformou a Eletrobras em "corporation" – empresa de controle pulverizado, em que a ingerência de grandes acionistas é limitada. Dono de 43% das ações, o governo tem um de nove assentos no conselho, e quer mais.
O STF decidiu não decidir e abriu conciliação. O acordo negociado entre MME e Eletrobras para resolver a questão é de arregalar os olhos. Ao menos os do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que tenta impedir o acerto.
Por poder na Eletrobras, governo aceita "mico" bilionário de Angra 3
A ideia é fazer uma troca de ações na qual a União abre mão de uma pequena parte de seus papéis na Eletrobras e assume a fatia de quase 36% que a companhia privada ainda tem na estatal Eletronuclear. Em paralelo, a Eletrobras amplia seu conselho para dez cadeiras, das quais três ficam com a União. E antecipa o repasse de R$ 20 bilhões devidos a um fundo setorial, em vez de seguir pagando prestações anuais até 2047.
Tomando posse de 30% dos assentos da Eletrobras, Lula espera convencê-la a fazer o que ele julga correto – meses atrás, o presidente afirmou que as empresas precisam estar de acordo com "o pensamento de desenvolvimento do governo". E, com a antecipação dos R$ 20 bilhões (e mais R$ 7,8 bilhões em uma securitização no mercado financeiro), Silveira promete baixar a conta de luz no curto prazo.
Qual o preço?
Ao se tornar o único dono da Eletronuclear, o governo assume sozinho as pendências da empresa, hoje compartilhadas com a Eletrobras. A principal é concluir as obras de Angra 3, ou desistir de vez. O custo para completar a usina nuclear é calculado em pelo menos R$ 20 bilhões; algumas estimativas jogam a conta para R$ 26 bilhões. Por outro lado, fechar o canteiro não sairia por menos de R$ 13 bilhões, e há quem calcule que o prejuízo seria o dobro disso.
Para os acionistas privados da Eletrobras, livrar-se desse mico gigante é um alívio. E o que o Estado – no fim das contas, o contribuinte – ganha ao assumir a guarda unilateral do bicho?
Silveira e Lula podem alegar que conta de luz vai cair, ao menos no começo. Meses atrás, quando assinaram uma medida provisória autorizando a antecipação do dinheiro da Eletrobras via securitização, a promessa foi de redução de até 5%. Nesta quarta-feira (7), ao anunciar a captação de R$ 7,8 bilhões de cinco bancos, Silveira disse que a tarifa cairá de 2% a 10%.
Antecipar o dinheiro devido pela Eletrobras significa trazer para o presente, com possíveis dividendos eleitorais, um benefício que seria diluído no tempo. E abrir mão de alívios futuros, questão a ser enfrentada pelo consumidor mais adiante.
Especialistas alertam que a bondade à vista pode ter "efeito rebote" a prazo. Quem viu Dilma Rousseff baixar a tarifa na marra em 2012 deve lembrar do que aconteceu depois.
O dinheiro da securitização será usado para quitar empréstimos contraídos pelo setor na pandemia e na crise hídrica. Como ocorre em qualquer antecipação, como a do 13.º salário ou da restituição do Imposto de Renda, a operação terá um custo – no caso, Selic mais 2,2% ao ano.
É menos, vale dizer, que o custo dos empréstimos quitados – uma diferença de uns R$ 500 milhões. Mas, para o Instituto Acende Brasil, trata-se de uma "economia pífia diante dos bilhões por ano a serem assumidos pelos consumidores para favorecer os novos empreedimentos de geração". É o assunto do próximo tópico.
Lula prorrogou subsídio para energia renovável. Consumidor vai pagar
A mesma MP trouxe um presente a empreendedores do setor energético. A pedido do Consórcio do Nordeste, o governo prorrogou por três anos o prazo para que usinas de fontes renováveis entrem em operação com direito a desconto de 50% na tarifa de transmissão.
É energia limpa gerando emprego e renda, dirão Lula e Silveira. Pode ser, mas a cortesia será paga pelos consumidores do mercado regulado, entre eles todas as residências. Os 601 projetos habilitados somam cerca de 25 gigawatts (GW), mais que uma Itaipu (14 GW), e vão usufruir do benefício por 30 anos.
Hoje cerca de 13% da conta de luz do brasileiro comum serve para sustentar esse tipo de benesse, segundo a Aneel, agência reguladora do setor. Um bolo que chegou a R$ 40,3 bilhões em 2023, e crescerá. A Abrace, associação de grandes consumidores, estima que a prorrogação dos incentivos custará R$ 4,5 bilhões por ano. A consultoria PSR vê impacto maior, de R$ 7 bilhões.
Após mais de duas décadas de estímulos oficiais e ganhos de eficiência, parques eólicos e solares ainda precisam de subsídio? O Consórcio do Nordeste, o ministro de Minas e Energia e o presidente da República pensam que sim. Especialistas desinteressados provavelmente dirão que não.
Socorro a distribuidora favorece irmãos Batista. Fatura vai para o consumidor
Outro negócio surgido do Ministério de Minas e Energia tinha como objetivo declarado salvar o caixa da Amazonas Energia, uma distribuidora afundada em dívidas, e assegurar o abastecimento de energia no estado. Mas acabou por favorecer a Âmbar Energia, dos irmãos Joesley e Wesley Batista.
Em junho, a Âmbar comprou da Eletrobras 13 termelétricas. Doze são fornecedoras da Amazonas, mas não recebiam pagamentos desde novembro. Além de conseguir R$ 4,7 bilhões com a venda, a Eletrobras repassou o risco da inadimplência para a Âmbar. Mas o tal risco logo foi eliminado: três dias após o anúncio da transação, o governo assinou uma medida provisória que modificou as regras de remuneração dessas térmicas e transferiu para o conjunto dos consumidores brasileiros o dever de pagar pela energia delas.
A mudança no rateio terá efeitos distintos a depender do tipo de consumidor (baixa ou alta tensão) e da região do país. Segundo a TR Soluções, empresa que faz projeções de tarifas, os mais afetados serão os clientes de baixa renda e todos os consumidores das regiões Norte e Nordeste, incluindo a indústria.
O ministro Silveira e a Âmbar negaram favorecimento. O MME também afirmou que eventuais aumentos na conta de parte dos consumidores serão "irrisórios".
Claro que a revelação, pelo "Estadão", de que executivos da Âmbar foram recebidos no MME 17 vezes em 12 meses pode impressionar um ou outro desconfiado, mas empresa e ministério garantem que não trataram da MP e que não houve qualquer encontro fora da agenda oficial.
Outro ponto importante da mesma MP é que o governo relaxou metas regulatórias da Amazonas Energia. Isso significa que, nos próximos reajustes tarifários, a distribuidora poderá elevar ganhos mesmo que não melhore índices de furtos de energia, inadimplência e custos operacionais.
Essas facilidades tornaram a companhia mais atraente. Tanto que, duas semanas após a publicação da MP de salvamento, uma empresa apresentou proposta para assumir o controle da Amazonas. Nome da candidata: Âmbar Energia.
Para registro: a Âmbar também foi uma das empresas autorizadas a intermediar a importação de energia da Venezuela para Roraima a valores estratosféricos – ainda que inferiores ao custo das térmicas que hoje abastecem o estado. Nenhuma importação foi realizada até agora, no entanto.
Lula cede ao Paraguai e brasileiro paga caro por energia de Itaipu
Alguns dos negócios citados acima ilustram uma regra não escrita do setor elétrico, segundo a qual todo contratempo do sistema ou das empresas deve ser ressarcido pelo consumidor. É ele quem assume o risco se falta chuva, se chove demais, se o consumo está alto, se está abaixo do previsto e assim por diante.
De tempos em tempos os governos tentam atenuar essa pressão, em geral na base do improviso – caso da citada antecipação de recursos da Eletrobras. Enquanto isso, um benefício esperado há décadas, que deveria ser líquido e certo, ficou para depois.
Veja o que aconteceu com Itaipu. Conforme previsto em contrato, a dívida da hidrelétrica foi quitada no início de 2023, o que deveria derrubar imediatamente o custo de sua energia em até 40%. Afinal, a parcela da tarifa destinada ao pagamento da dívida deixou de existir.
Mesmo assim, os moradores do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que rateiam essa conta, continuarão pagando caro até o fim de 2026. É que, cedendo à pressão do Paraguai, a gestão Lula aceitou um aumento de 15% na tarifa. Para que o impacto desse reajuste não chegue ao consumidor, a usina dará um "cashback" ao sistema. Redução para valer, só de 2027 em diante – se é que. Quer dizer: o preço pode até não subir, mas os brasileiros terão passado quase quatro anos pagando mais do que deveriam.
O ministério de Silveira festejou a negociação, afirmando que o governo dá prioridade à "modicidade tarifária". Não fez o mesmo alarde com o salto de mais de 40% nas despesas da usina após o acerto com o Paraguai. Agora são US$ 2,2 bilhões por ano, mais de 80% a cargo dos brasileiros.
Com a dívida quitada, a empresa pode gastar mais com o que chama de projetos sociais e ambientais. Eles fazem a alegria de prefeitos, governadores e até da família presidencial.
Para ficar numa lista curta, hoje em dia Itaipu banca ponte, aeroporto, rodovia. Dará R$ 1,3 bilhão para a Conferência do Clima em Belém. Também pretende comprar terras para grupos indígenas no Oeste do Paraná.
Há despesas mais simbólicas. Ex-funcionária, a primeira-dama Janja da Silva conseguiu que a hidrelétrica construísse um abrigo para os filhotes de emas do Palácio da Alvorada. Motivo: a usina tem larga experiência com animais silvestres.
Para quem está preocupado com "colapso tarifário", o ministro Silveira promete desde o ano passado um "freio de arrumação" no setor. Após vários adiamentos, diz que a reforma virá em setembro. Desejo sorte a todos que têm conta de luz para pagar.
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