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Por muito tempo Paulo Guedes negou, desmentiu, desconversou. Mas em algum momento o ministro da Economia teria de admitir abertamente que precisará descumprir o teto de gastos – ou então mudar a regra – para atender às pressões do presidente Jair Bolsonaro e da ala política do governo.
Esse dia chegou: quarta-feira, 20 de outubro de 2021, faltando pouco menos de um ano para as eleições presidenciais.
Guedes deixou claro que o objetivo é garantir um Auxílio Brasil de R$ 400 por família. O ministro e sua equipe trabalhavam por R$ 300, mas o presidente avisou que queria mais, e logo. "Queremos ser um governo reformista e popular. Não populista. Os governos populistas estão desgraçando seus povos na América Latina", disse o ministro.
O teto de gastos é a principal regra fiscal do país. Ele busca impedir que o conjunto das despesas públicas avance além da inflação. Instituído por emenda constitucional no fim de 2016, entrou em vigor em 2017 e vale por vinte exercícios financeiros (até 2036), podendo ter suas regras de correção revisadas no décimo ano (2026).
Mas Guedes, até há pouco um defensor inflexível do teto de gastos, agora fala em revisar a regra já, logo no quinto ano de vigência – ou seja, durante o jogo, na metade do primeiro tempo. Outra possibilidade citada por ele é pedir uma licença para gastar além do teto. Nas palavras do ministro, essa licença seria de R$ 30 bilhões e temporária, valendo apenas para 2022. Sim, o ano da eleição.
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Eu disse no início que o ministro admitiu abertamente. Mas admitiu do jeito dele. Sobre a revisão da regra, falou em "sincronização de despesas". Traduzindo: ele quer que o índice usado para corrigir o teto seja o mesmo que reajusta as principais despesas obrigatórias.
Hoje o teto é corrigido pelo IPCA acumulado em 12 meses até junho. E alguns dos principais gastos (aposentadorias, pensões, abono salarial, seguro-desemprego, Benefício de Prestação Continuada) são reajustados pelo INPC de 12 meses até dezembro.
Faz sentido usar o mesmo índice e com a mesma data-base? Sim, todo o sentido. Mas por que falar nisso só agora? Por oportunismo. Nas atuais circunstâncias, dependendo do índice e da data-base escolhidos, essa revisão poderia abrir espaço fiscal para mais gastos. Até meses atrás, o descasamento entre os índices de correção favorecia o governo, com o reajuste do teto superando o das despesas obrigatórias, mas a inflação avançou tanto nos últimos meses que a vantagem se perdeu.
Outra possibilidade, segundo o ministro, seria pedir um "waiver" na regra do teto. A expressão significa algo como renúncia de um direito, dispensa de uma exigência.
Em outras palavras, Guedes quer uma permissão para gastar fora dos limites. Mas temporária, ele garante: "Como nós queremos essa camada de proteção para os mais frágeis, nós pediremos que isso viesse como um waiver, para atenuar o impacto socioeconômico da pandemia. Estamos ainda finalizando, vendo se conseguimos compatibilizar isso".
Chama atenção que Guedes tenha capitulado horas depois de sua equipe publicar um longo texto defendendo a manutenção do teto de gastos.
"O compromisso do governo brasileiro com a responsabilidade fiscal é reafirmado a cada dia, através de ações que primam pelo equilíbrio das contas públicas e eficiência dos gastos", diz o comunicado da Secretaria de Política Econômica, chefiada por Adolfo Sachsida, um dos principais auxiliares de Guedes.
"A manutenção do teto de gastos é determinante nesse contexto, uma vez que esta medida tem permitido a imposição de limites ao gasto público e contribui para a sua racionalização", diz o texto mais adiante.
A inflação está elevada, puxada por itens essenciais como os alimentos. Mais brasileiros estão passando fome, o Bolsa Família não é reajustado desde 2018 e 2 milhões de famílias que têm direito ao benefício não o recebem porque o governo diz não ter dinheiro para pagar. A correção é mais que necessária.
Vergonhosa é a forma como Guedes e seu chefe lidam com a questão.
De um lado, Bolsonaro finge levar o regime fiscal a sério (na quarta pela manhã mesmo disse que ninguém furaria o teto e que os recursos para o Auxílio Brasil viriam do Orçamento) enquanto trabalha nos bastidores (e às vezes publicamente) para torpedeá-lo.
O ministro, por sua vez, passou boa parte do governo jurando lealdade cega ao regime fiscal, recusando-se a admitir qualquer discussão sobre o assunto, ao mesmo tempo em que se via obrigado a elaborar artimanhas para driblar a norma – e com elas provocando alta de juros e dólar, aumento no risco do investimento produtivo e tudo mais.
Ambos estão, desde o início da pandemia, prometendo coisas como Renda Brasil, Renda Cidadã e Auxílio Brasil – qualquer coisa que não fosse "reajuste do Bolsa Família".
Tiveram muito tempo para construir um programa social decente e assegurar seu financiamento. O que conseguiram foi rebatizar a transferência de renda e mudar suas regras, ameaçando os benefícios de mais de 5 milhões de famílias.
Agora, agem às pressas – o auxílio emergencial termina no fim do mês e o Bolsa Família deixa de existir no início de novembro – e por conveniência.