A desgraça provocada pelo coronavírus deu origem a um debate inédito sobre a ampliação de transferências de renda aos mais pobres, estimulado agora pelo ganho de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que trabalha com afinco pela reeleição que prometia combater.
É um debate repleto de boas intenções, mas às vezes carente de senso de prioridade.
Veja, por exemplo, o projeto de lei 4644/2020, que parlamentares do Psol apresentaram na semana passada. Nele, o partido propõe o pagamento de um “abono emergencial” no valor de um salário mínimo (R$ 1.045), a ser pago em cota única até dezembro de 2020 para:
- empregados formais (CLT) com renda de até dois salários mínimos;
- aposentados e pensionistas do INSS que ganhem até dois salários mínimos; e
- pessoas que recebam o Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou Renda Mensal Vitalícia (RMV).
Em outras palavras: no momento em que se busca dinheiro para ampliar a assistência a pobres e miseráveis, o Psol propõe reforçar a renda de quem já é protegido. Caso tenha sucesso, será ainda mais difícil aumentar os repasses para a base da pirâmide.
Apesar da recessão, a maioria dos empregados formais – eram 35 milhões antes da pandemia – conseguiu manter emprego e salário.
Do total de celetistas, aproximadamente 10 milhões perderam renda, seja por redução de jornada ou suspensão de contrato. Porém, tiveram estabilidade de emprego assegurada por alguns meses, e o complemento salarial pago pelo governo garantiu que todos continuassem ganhando muito mais que a grande maioria dos beneficiários do Bolsa Família ou do auxílio emergencial.
Os formais que perderam o emprego, já descontadas as admissões, somam pouco mais de 1,4 milhão de março a julho, segundo o Caged. Boa parte teve direito à multa rescisória e pôde sacar o saldo do FGTS, e muitos ainda estão recebendo o seguro-desemprego, que é de no mínimo R$ 1.045.
Chama atenção a justificativa do Psol para pagar um auxílio extra aos trabalhadores com carteira assinada. O partido explica que é para mitigar a perda de renda de “parcela significativa da força de trabalho brasileira, afetada pela onda de demissões identificada em 2020”, acrescentando em seguida que, em julho, faltava trabalho para 41 milhões de brasileiros, segundo o IBGE.
Se falta trabalho a tantos, por que dar mais dinheiro justamente aos que ainda têm ocupação – e ocupação formal? Pode-se argumentar que muitos celetistas moram com gente que perdeu o emprego. Mas e como ficam os domicílios onde ninguém trabalha, que há pouco tiveram o auxílio emergencial reduzido a R$ 300?
Os aposentados e pensionistas do INSS, outro alvo do abono emergencial do Psol, não tiveram perda de renda na pandemia. Ao lado dos servidores públicos ativos e inativos, eles estão no grupo de brasileiros que atravessaram a crise com a garantia de pagamentos em dia e na íntegra. Nesse caso, o Psol argumenta que, por terem recebido antecipadamente o 13.º salário (algo que pobres, miseráveis e informais não tiveram), os aposentados e pensionistas ficarão sem o benefício em dezembro.
Os beneficiários do BPC e do RMV – pessoas idosas ou com deficiência – têm de comprovar pobreza para receber o benefício. De todo modo, recebem um salário mínimo por mês, o que não mudou durante a pandemia. É o mesmo valor pago a dois terços de todos os beneficiários do INSS, e mais que o rendimento médio de metade dos trabalhadores do país.
Pelos cálculos do Psol, o abono emergencial em cota única vai custar R$ 59,4 bilhões, ou 0,8% do PIB, e beneficiar 52 milhões pessoas – um a cada quatro brasileiros. Com esse valor, seria possível bancar 20 meses de Bolsa Família, este sim um programa direcionado às famílias mais pobres do país.
Ressalte-se que o Psol e vários outros partidos apresentaram projetos de todos os tipos para ampliar ou transformar o Bolsa Família. A questão é que, na vida real, o Orçamento é finito – e ampliar a renda de quem já é protegido ajuda a manter os demais à míngua. Se temos de escolher, devemos optar pelos mais vulneráveis.
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