Há menos de uma semana, o mundo estourava espumantes para desejar um 2019 melhor. Mas, para que isso efetivamente ocorra, é preciso limpá-lo do entulho que sobrou de anos passados. E um dos mais nocivos sobre o qual o ano novo pode se assentar já vem pelo menos desde 2016: a pós-verdade, termo escolhido como a palavra daquele ano que define a propensão contemporânea a não acreditar em fatos objetivos se eles se chocam com crenças pessoais. Esse comportamento tem estreita relação com outro lixo que deu as caras em 2018: as notícias falsas, ou fake news. A pessoa se sente tentada a acreditar na mentira (e a repassá-la adiante) porque ela reforça suas convicções.
Assim como há equipamentos para remover entulhos na construção civil, também existem ferramentas para pensar de forma mais crítica e, assim, se livrar da falsidade que vem sendo tão explorada nos dias de hoje. Um bom começo é saber como funcionam a pseudoprofundidade e as falácias – raciocínios e argumentos que, a despeito de poderem parecer verdadeiros, são logicamente equivocados.
Pseudoprofundidade: é a arma de “gurus” das mais variadas áreas para iludir e conquistar sua plateia. Quem usa a pseudoprofundidade costuma, primeiramente, falar o óbvio, mas de forma solene. É impossível não concordar – e aí ele começa a seduzir o público. Também salpica em seu discurso citações de autores e palavras difíceis, passando a ideia de erudição. Há também uma boa dose de teatralidade ao expor seu pensamento – trata-se de estilo; não substância. O golpe final é a “revelação” de uma verdade que supostamente estava sendo sorrateiramente ocultada por interesses escusos, o que dá a impressão de que o interlocutor acaba de ser iniciado num segredo. Gurus da pseudoprofundidade também costumam recorrer a uma série das falácias que são descritas a seguir.
Rampa escorregadia: se alguém põe os pés numa rampa lisa, não tem jeito: vai escorregar feio. Essa falácia argumenta de modo semelhante. Afirma que, se algo ocorrer, outro fato (geralmente ruim) inevitavelmente irá acontecer. Exemplos: se a maconha for legalizada, logo outras drogas mais pesadas também serão liberadas; se os tratamentos genéticos medicinais forem autorizados, em breve os pais poderão “montar” geneticamente seus bebês; se eu emprestar dinheiro a um amigo, ele vai pedir mais e irei falir rapidamente. A rampa escorregadia também é muito usada no discurso político para desconstruir adversários: “Se você votar em A, o mundo vai acabar”. O argumento confunde possibilidade com inevitabilidade de algo ocorrer. Mas a verdade é que a ocorrência de grande parte dos fatos depende da conjunção de uma série de fatores e não de um único.
Falso dilema: ocorre quando a argumentação tenta forçar alguém a escolher entre duas únicas opções opostas – “tudo ou nada”, “8 ou 80” –, quando existem mais alternativas. A polarização política da atualidade é em grande medida um exemplo do falso dilema: “Se você não é adepto da corrente A, então é partidário de B”. Mas a realidade mostra que ainda há C, D, E… A dica aqui é: quando se sentir forçado a escolher entre duas opções, verifique se não há mais alternativas.
Falácia genética: pressupõe que a origem boa (ou má) de alguém ou de algo determina se essa pessoa, entidade ou ideia é boa (ou ruim) – o que não é necessariamente verdade. Exemplos desse raciocínio: se determinado movimento ou organização foi fundado para lutar por uma causa justa, então os seus métodos são necessariamente válidos. Ou, no sentido inverso, se uma democracia surgiu como resultado de uma guerra, ela é ruim. É preciso cuidado nesta hora: pessoas, instituições ou ideias têm atributos individuais (bons ou ruins) que independem de onde vieram. O segredo está em reconhecê-los.
Falácia do mascarado: é como se alguém, em sua argumentação, colocasse simbolicamente uma máscara na pessoa, ideia ou fato ao qual se refere. A mudança da aparência na argumentação busca induzir que algo ou alguém não é o que é. É comum que isso ocorra, por exemplo, na negação de aspectos ruins de uma pessoa ou daquilo do qual se gosta ou se admira, funcionando como a máscara que esconde a face negativa.
Falácia post hoc: o termo post hoc significa, em latim, “após isto”. Essa falácia ocorre quando alguém conclui que, se algo ocorreu logo após outro evento, o primeiro é causa do segundo. É típica dos supersticiosos: alguém que, ao usar uma camisa nova, vê seu time vencer e passa a acreditar que foi a roupa que provocou o triunfo. Esse erro de raciocínio também ocorre em outras áreas. Políticos adoram, por exemplo, atribuir a si bons resultados no crescimento da economia. Mas muitas vezes isso tem mais a ver com o cenário externo do que com ações governamentais. Também gostam de lançar mão do discurso da “herança maldita”: se algo está dando errado agora, foi por culpa do governante que o antecedeu. Pode ser que seja; mas não necessariamente. É preciso ficar atento às verdadeiras relações de causa e efeito para não ser enganado por essa falácia.
Apelo à autoridade: a palavra de um especialista ou a citação de seu nome dá credibilidade a um argumento. Mas isso só é válido quando a pessoa realmente conhece aquele tema (ou seja, é uma autoridade na área). O problema é quando celebridades, pessoas que gozam de prestígio popular e até mesmo especialistas em outros assuntos opinam sobre aquilo que não dominam. Para evitar cair nessa falácia, é prudente se perguntar: a pessoa é de fato um especialista no assunto? Outras autoridades nessa área dizem o mesmo? Se a resposta a alguma dessas questões for “não”, desconfie.
Apelo à ignorância: ocorre quando alguém diz que algo é verdadeiro porque não foi provado que é falso. Trata-se de um apelo à ignorância porque inverte a lógica da argumentação: a ausência de provas da falsidade não é prova de sua verdade. Por exemplo: alguém não pode dizer que unicórnios ou seres espirituais existem apenas porque não se provou que eles não existem. O ônus da prova é de quem acredita neles.
Falácia relativista: “Isso pode ser falso para você, mas é verdade para mim.” Quando alguém está perdendo uma discussão, esse é um comentário comum. Mas isso pode estar fundamentado numa falácia. Existem realidades relativas, que dependem de pessoa para pessoa. O clima frio para um nordestino pode ser agradável a um sulista. Mas nem tudo é relativo. Dizer que alguém pode pular de um prédio e sair voando não é verdade, mesmo que alguém acredite nisso. Confundir crença com fatos e recorrer ao relativismo para justificá-la é um equívoco.