Ilustração: Marcos Tavaes| Foto:
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Costumo ver a escrita como um bordado. Você pega o papel branco e vai alinhavando palavras. De repente, as transforma em argumentos, ideias, sentimentos. Tal qual a bordadeira toma o tecido para criar imagens com os fios coloridos que escolhe. Ela usa agulha. O redator, a pena – hoje, é verdade, muito mais o teclado. Mas as linhas de ambos, do texto e do bordado, tiram algo do nada. Dão sentido e cor ao vazio – e, de certa forma, à própria vida.

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Mas tudo na vida tem um fim. O último ponto do bordar. O último ponto final. E isto aqui é um adeus. Há pouco mais de um mês, me avisaram que a Gazeta do Povo teria neste sábado (10 de outubro) sua última edição impressa. Isso implica que esta seria (e é) minha coluna de despedida – ao menos no papel, a mídia que me fez escolher este ofício. Pensei no que iria redigir. Algumas ideias rondaram meus pensamentos. Nenhuma muito boa para a ocasião. E então me ocorreu: por que não republicar o texto de que mais gosto?

Foram centenas de crônicas, análises e artigos de opinião em pouco mais de 12 anos ocupando este espaço – nove deles escrevendo semanalmente e os últimos três, uma vez por mês. Foi uma dúzia de anos tentando dizer algo que fizesse sentido a vocês. Buscando trazer uma novidade até a linha final; uma surpresa até a última palavra. Acho que algumas vezes acertei a mão e consegui meu intento. E há vários textos pelos quais tenho especial carinho e orgulho.

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Por isso poderia parecer difícil escolher uma única opção. E, no entanto, não tive dúvida. Ela é absolutamente especial pra mim. Por aquilo que está nas linhas. E nas entrelinhas. A crônica Bordando o Fio da Vida foi originalmente publicada na edição impressa de 10 de fevereiro de 2016. Espero que gostem. Até mais!

Bordando o fio da vida

Nestes dias em que minha avó completaria 99 anos, uma doce lembrança voltou à memória. Sentada na poltrona, ela bordava. Serena. Paciente. Como sempre era. Mas naquele dia, não sei por que, eu a observei de modo diferente. Mergulhei fundo no que meu olhar via com frequência. E enxerguei além.

Ela escolhia com cuidado as linhas coloridas. Passava o fio no buraco da agulha; e os dois pareciam dar as mãos como um casal. E dançavam no pano branco, de um lado ao outro, dando voltas, entrelaçando-se. Dessa união nascia algo onde antes nada havia: flores, frutos, ramos, pequenos animais, finos traços geométricos emergiam dando cor ao tecido alvo. Havia no bordado a beleza sutil dos pequenos detalhes. Aqueles que muitas vezes passam despercebidos, que só notamos quando não estão mais ali. Como o carinho que minha avó demonstrava quieta. Num gesto. Num olhar. Até mesmo num calar.

Puxei ainda mais a linha da imaginação e aquela visão me trouxe outra. E mais outra... Entendi que havia algo que me ligava a minha avó. Como se fora um fio de bordado que dela saía, passando pela minha mãe até chegar a mim. Corri para a estante, peguei um livro que já havia lido. Dele tirei alguns dados e fiz um cálculo. Se cada ano fosse um diminuto milímetro do fio da vida, uma existência longa não iria além de dez centímetros. E se déssemos um laço nas pontas da linha de todos nossos antepassados que viveram desde o início da História, iríamos ter apenas seis metros. Duzentos, se quiséssemos chegar ao primeiro humano a pisar na Terra.

O espanto veio depois. O fio da evolução, que nos levaria aos primitivos organismos unicelulares, teria 3,5 mil quilômetros – a distância de Curitiba a Natal. Ou a Boa Vista, em Roraima, se caminhássemos no passado até a formação de nosso planeta azul. O Big Bang, por sua vez, estaria na exótica e longínqua Índia. Percebi nossa pequenez e efemeridade na vastidão do universo. A vida humana é, afinal, uma linha frágil e curta.

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Lembrei então de algo que havia lido em outro livro na casa de minha avó. Os antigos gregos diziam que o destino dos homens é determinado por três irmãs: as moiras. Uma tece o fio da vida na roda da fortuna. Outra distribui a cada um o seu quinhão: para uns mais; para outros menos. A terceira corta-o. No final, o que importa é o que escolhemos fazer com o novelo que nos é dado.

Alguns usam o fio para amarrar cercas que dividem. Atar mãos. Amordaçar bocas. Outros confeccionam uma forca. Devemos nos manter afastados destes.

A maioria trança uma rede. Para lançá-la ao mar e obter seu sustento. Outros tecem uma trama mais fina. Tiram dela o tecido que vai aquecer o corpo no frio.

Mas há quem vá além. Que faz como Ariadne, personagem de outra lenda dos antigos gregos. Por amor, ela entregou seu novelo para Teseu entrar no labirinto do Minotauro – fera meio homem, meio touro. Ficou segurando a linha do lado de fora para que ele, após enfrentar a besta, encontrasse a saída. Feliz é aquele tem ao seu lado alguém como Ariadne, que não o deixa se perder diante dos desafios e dificuldades.

Há ainda quem apenas pegue sua linha e, com paciência, entrelace-a na agulha. E faça os dois bailarem sobre o pano branco como um casal, de um lado para o outro. Muitos questionarão: “Que utilidade isso tem?”. Outros resmungarão: “Perda de tempo!”. Mas essas pessoas nos dão algo de que também precisamos – tanto quanto o peixe que nos alimenta e o agasalho que nos aquece. É preciso, contudo, ter paciência para esperar. E olhos para observar detalhes. Mas quando a cor e a forma emergem do nada, vemos então o encanto do bordado da vida. E podemos dizer: é muito bom que haja gente como as bordadeiras. Obrigado.

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