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Fernando Martins

Fernando Martins

Democracia dos likes: quando pode ser bom que o político ignore a vontade do eleitor

(Foto: Ilustração: Felipe Lima/Thapcom)

As redes sociais estão provocando uma revolução na política. Elas aproximaram os cidadãos das autoridades públicas, que agora são diretamente cobradas pelos seus atos. Isso as obrigou a prestar contas de forma rotineira. Para não desagradar seus eleitores, políticos passaram a tomar decisões mais alinhadas com o que a população pensa. Essa é a faceta positiva da nova democracia digital (ou “democracia dos likes”): fortalece o elo entre representantes e representados.

Mas, como quase tudo, também há outro lado. Por mais incômodo que pareça, há circunstâncias em que pode ser desejável que os políticos desrespeitem a vontade de seus eleitores – o que tende a ser cada vez mais difícil de ocorrer nos novos tempos digitais.

A discussão é atual. Mas nada nova. No artigo As Metamorfoses do Governo Representativo, o filósofo francês Bernard Manin descreve como as nascentes democracias modernas debateram intensamente, no século 18, se os eleitos teriam de ser obrigados a cumprir as “instruções” de seus eleitores – o que se convencionou chamar de “mandato imperativo”.

Nos EUA, a prática das “instruções” era disseminada nas instâncias de representação pública do período colonial. Após a independência (1776), alguns estados a adotaram em suas legislações. Durante as discussões da Primeira Emenda à Constituição americana, em 1789, foi apresentada a proposta de instituir o direito de os cidadãos determinarem o que os eleitos têm de fazer. Mas a ideia foi rejeitada e o mandato imperativo, abandonado.

Do outro lado do Atlântico, a Inglaterra já vinha consolidando o entendimento de que os eleitos representam a nação como um todo, e não os distritos pelos quais são eleitos – o que na prática significa que os cidadãos não estariam legalmente autorizados a determinar o que os parlamentares têm de fazer. A proposta de obrigar os eleitos a cumprir suas promessas de campanha chegou a ser apresentada por parlamentares britânicos no século 19. Não foi aprovada.

Na França revolucionária, logo após a tomada da Bastilha (1789), os mandatos imperativos foram proibidos. Os franceses nunca tentaram mudar isso desde então.

À época, quem defendia a prática das “instruções” queria dar mais poder aos cidadãos diante da impossibilidade física de se instituir em países uma democracia direta nos moldes das cidades-Estado da Grécia antiga, o modelo que inspirou os regimes democráticos atuais.

O iluminista suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), por exemplo, acreditava que a democracia, entendida como o regime em que as pessoas fazem as próprias regras que terão de seguir, só seria compatível com os mandatos imperativos.

Mas venceram os argumentos contrários. O escritor e político francês Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836) afirmava que, nas sociedades modernas, os cidadãos não têm mais o tempo necessário para estudar assuntos complexos e debater com profundidade os assuntos de Estado. Portanto, essa atividade tem de ser delegada aos representantes eleitos.

O advogado e político americano James Madison (1751-1836), quarto presidente dos EUA, via como positivo algum distanciamento entre os eleitos e o povo. Para ele, longe das paixões populares do momento, o debate sobre o bem coletivo seria mais refinado e amplo, com maiores possibilidades de as decisões públicas serem melhores.

Por esse motivo, os políticos teriam de ter o direito a desrespeitar a vontade de seus eleitores e a seguir o que manda suas próprias consciências, ainda que isso colocasse sua popularidade em risco. O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832) afirmava que a sociedade poderia controlar os maus políticos simplesmente não os reelegendo.

Obviamente, nem tudo funciona como os intelectuais teorizam. A distância entre políticos e a população tornou-se tão grande nos tempos atuais a ponto de ser nociva para a própria democracia, já que os cidadãos não se sentem minimamente representados no sistema político e passaram a descrer das instituições. Nesse sentido, a aproximação on-line entre representantes e representados definitivamente é uma oportunidade para rejuvenescer a democracia.

Mas as reflexões dos pensadores iluministas tampouco deixam de ser válidas – especialmente porque as circunstâncias atuais lembram as do século 18. A internet, ao romper a intermediação entre eleitos e eleitores, proporcionou a possibilidade de a democracia representativa rumar para um modelo mais direto. E cada vez mais governantes e parlamentares, antes de tomar suas decisões, consultam suas redes sociais para saber o que fazer e para conquistar likes de seus eleitores – instituindo uma espécie de mandato imperativo informal.

Isso lança questões que terão de ser enfrentadas pelos construtores dessa nova democracia digital que está surgindo. As ameaças são grandes. A política corre ainda mais risco de sacrificar o bem comum para atender paixões irrefletidas dos eleitores. Medidas duras e impopulares, mas necessárias no médio e longo prazos, poderão ser inviabilizadas. Grupos mais ativos nas redes sociais podem “sequestrar” as decisões políticas, que não necessariamente refletiriam a vontade da maioria. E até mesmo uma multidão de robôs on-line – que simulam eleitores reais, mas que só estão a serviço de grupos de interesse – pode passar a influenciar os rumos de uma nação.

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