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A moça do copo: crônica sobre nossa relação problemática com o tempo

Arte: Robson Vilalba/Thapcom (Foto: )

Dentre os personagens de filmes, um dos mais inusitados talvez seja um quadro. Isso mesmo. Uma pintura. No caso, O Almoço dos Barqueiros, do mestre do impressionismo francês Renoir. OK, é um personagem coadjuvante. Mas tem um papel importante na trama: funciona como alter ego da protagonista, Amélie Poulain – a moça do fabuloso destino. E, quem sabe, a tela também tenha um pouco (ou muito) de nós mesmos e de nossa problemática relação com o tempo. Com calma eu chego lá; aguardem!

Mas desde já alerto quem não viu o filme: para avançar nesta prosa é preciso dar um pequeno spoiler; nada que comprometa muito.

Então, vamos lá. O quadro, que mostra um descontraído almoço entre amigos às margens do Sena, entra na história pelas mãos do vizinho de Amélie, um apaixonado pela obra de Renoir. E, dentro de O Almoço dos Barqueiros, há uma figura que o intriga: a mulher com o copo d’água – a personagem dentro do personagem. Na cena, todos confraternizam com todos. Ou quase todos. A moça do copo não. Está distante. Imersa em seus pensamentos, embora haja um rapagão que aparentemente quer conversar com ela.

Isso motiva um diálogo entre os dois vizinhos. Amélie especula que a mulher talvez esteja pensando em alguém que não está ali. O vizinho provoca: “Ela prefere imaginar uma relação com alguém ausente do que criar laços com aqueles que estão presentes”. Amélie retruca: “Hummm, pelo contrário. Talvez faça de tudo para arrumar a vida dos outros”.

O desenrolar do filme não vem ao caso aqui (mas recomendo ver O Fabuloso Destino de Amélie Poulain; é leve e divertido como um almoço com aqueles de quem se gosta. Desde, é claro, que não se copie o comportamento da moça do copo!).

E o problema é exatamente este. Todos somos um pouco (ou muito) como a mulher desligada do quadro. Ela não está de fato presente no almoço. Está longe dali, seja o que for que esteja fazendo: sonhando com o príncipe encantado, maquinando a solução para o mundo, lamentando o leite derramado, pensando na morte da bezerra ou apenas preocupada com as contas a pagar.

Troque as roupas do século 19 por camisetas e jeans. E, principalmente, tire o copo da mão da senhorita e ponha no lugar um celular. Pronto, atualizamos a cena. Quem nunca? No meio de um almoço ou jantar com outras pessoas, distraído com o mundo virtual?

Com frequência nos ausentamos do presente. Para viver no passado, lamentando e culpando o que já era, suspirando as saudades do que não é mais. Ou então para viver no futuro, esperando pelo que ainda não é; e que talvez nunca seja. Taí: a grande armadilha e ilusão do tempo.

Muita gente boa, que gastou neurônios por nós, aposta que passado e futuro não existem da forma como costumamos vê-los. Uma boa explicação é a de Agostinho de Hipona (354-430). Sim, o santo. O que importa aqui não é sua santidade, mas o pensamento. Agostinho dizia que tudo o que existe de real é o presente, o agora. O passado é tão-somente a lembrança presente do que já se foi. E o futuro, a expectativa presente do que está por vir.

É tudo muito simples. Mas muitas vezes insistimos em não enxergar isso. O passado não existe mais de forma real; só como recordação. Nada pode mudá-lo, embora seja possível aprender com ele para modificar o presente. Lamentamos uma decisão errada? Façamos, então, de tudo para não errar de novo. Estamos tristes pela pessoa querida que nos deixou? Boa oportunidade para desfrutar a presença de quem ainda está ao nosso lado.

Já o futuro não existe porque não chegou ainda. É um bocado fantasioso imaginar e se preocupar com detalhes de como ele será – o que não significa que não possamos fazer planos. Achamos que só seremos felizes quando algo (sei lá o quê) nos acontecer? É um erro pensar assim. Mas ao menos podemos começar agora a nos mexer para que esse algo aconteça.

A questão essencial é que temos de resistir à tentação de deixar nossa cabeça viajar no tempo. Para viver o que existe: o presente. Vivenciar mesmo o que pode ser ruim. A vida não é perfeita, enfim. Mas também não é uma tragédia sem saída. Que o digam os bons filmes. As obras de arte. Um almoço com companhias agradáveis.

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