Foi uma viagem digna de ser lembrada. Uma verdadeira epopeia. Não tivesse sido, estas tintas não estariam sendo gastas 500 anos depois. A primeira volta ao mundo da história começa a completar cinco séculos em 2019 (que fique claro: “começa” porque a jornada levou três anos). Mas, muito mais do que uma curiosa efeméride e uma aventura notável, a expedição do navegador português Fernão de Magalhães serve de gancho para abordar alguns rumos estranhos do mundo contemporâneo. Se tiveram um pouco de paciência, caros leitores, daqui a pouco chego lá.
Magalhães e sua tripulação de 265 homens partiram da Espanha em 1519 com uma esquadra de cinco navios e um objetivo: descobrir uma rota oeste para as Ilhas Molucas (na atual Indonésia) e suas cobiçadas especiarias. Fizeram escala no Rio. Seguiram para a fria Terra do Fogo, onde parte dos marujos se amotinou. Depois de acalmar seus comandados, Magalhães encontrou uma passagem menos turbulenta do Atlântico para o Pacífico pelo estreito que hoje leva seu nome.
Por sinal, também foram aqueles marinheiros que, ao encontrarem as águas calmas do novo oceano, o batizaram de Pacífico. Mas a tranquilidade duraria pouco: sofreram de fome e doenças. Chegaram às atuais Filipinas, onde Magalhães foi morto por nativos. A viagem prosseguiu sem ele. Acharam as Molucas. Contornaram a África. E retornaram à Espanha em 1522. Eram apenas 18 homens. E um navio.
A rota oeste não se mostrou um bom negócio. Era longa demais. Mas a viagem entrou para a história assim mesmo. Afinal, estava definitivamente comprovado: o mundo é redondo.
A ideia de que a Terra é uma esfera não era uma novidade. Tinha sido proposta pelos antigos gregos. Havia evidências nesse sentido: a sombra do planeta projetada na Lua durante os eclipses lunares é curva; os navios desaparecem no horizonte marinho aos poucos e não de forma abrupta. Nos círculos eruditos, desde muito antes de Fernão de Magalhães, pouca gente acreditava que o mundo acabava num precipício em direção ao infinito. Um dos principais símbolos medievais de poder, usado ainda hoje por monarcas, é uma mostra disso: a cruz sobre um globo representa o domínio de Cristo sobre o mundo (esférico).
Após isso tudo, finalmente retornamos ao começo. E aportamos nos curiosos dias atuais – que, paradoxalmente, em muitos aspectos se parecem com uma volta no tempo. Depois de 500 anos, muitas outras viagens ao redor do globo e incontáveis provas de que o planeta é uma bola (inclusive fotos do espaço), cresce o número de pessoas que acredita que a Terra é plana. Sim: isso mesmo!
O terraplanismo talvez seja apenas o exemplo mais grotesco do anticientificismo, anti-intelectualismo e irracionalismo que têm conquistado legiões de adeptos em plena era da informação. São as voltas que o mundo dá – perdoem o trocadilho.
Trata-se de um tipo de pensamento que até ganhou um neologismo para explicá-lo: a pós-verdade – quando a veracidade objetiva dos fatos já não importa para as pessoas, mas sim as crenças individuais. É o mesmo fenômeno que explica por que as fake news se espalham com tanta rapidez: muita gente quer consumir notícias não necessariamente verdadeiras, mas que reforcem suas convicções.
Outro grupo que rejeita evidências são os criacionistas. Eles acreditam na literalidade da Bíblia, quando nem mesmo a Igreja Católica vê atualmente incompatibilidade da teoria de Darwin com a fé: a evolução teria sido o modo como Deus criou as mais variadas formas de vida.
Muita gente (incluindo criacionistas) costuma desmerecer o darwinismo afirmando se tratar de uma mera teoria – o que indicaria não haver comprovação dela. Alguns são até mesmo jocosos, questionando por que nunca um macaco saiu da floresta falando se a evolução está certa. Mas o fato é que as mutações e a seleção natural – mecanismos propostos por Darwin –, embora ajam de forma lenta em organismos complexos, são verificados com frequência em bactérias e vírus. É por isso que as pessoas têm de se vacinar anualmente contra a gripe (os vírus sofrem mutações e a imunização anterior não é eficaz contra a nova cepa).
As vacinas, por sinal, também têm sido alvo do anticientificismo. As taxas de imunização vêm constantemente caindo. Especialmente nos países desenvolvidos, onde doenças até então controladas voltaram com força – caso do sarampo. O argumento central desse movimento é de que a vacinação, em vez de prevenir, causa enfermidades.
Há ainda uma crença de fundo que alimenta o descrédito das vacinas: elas fariam parte de um plano maligno da elite global para enfraquecer e dominar a humanidade. Talvez a primeira vez que isso tenha aparecido foi no manifesto antissemita Protocolos dos Sábios de Sião – documento do fim do século 19 que descreve uma suposta conspiração secreta judaica e maçônica para controlar o mundo. Uma das estratégias do complô seria justamente “inocular doenças” nas pessoas.
Os Protocolos são uma farsa historicamente comprovada. O texto foi inventado pelo governo do czar russo Nicolau II para perseguir adversários. Anos mais tarde, ajudaria os nazistas a “justificar” seu antissemitismo e as atrocidades que viriam a cometer contra judeus. E, apesar disso tudo, ainda hoje há quem acredite nas falsidades do texto, que circula como verdadeiro pela internet.
A crença em teorias da conspiração, por sinal, é mais uma praga dos tempos atuais. Obviamente, existem complôs reais. Mas são muito menos frequentes e “globais” do que sugerem os planos de dominação que grassam pelas redes sociais.
Ainda assim, elas seduzem multidões. Isso ocorre por vários fatores. Apresentam uma explicação simplista de um “todo” complexo. Apelam a convicções pessoais pré-existentes. Ofertam a posse de um conhecimento “secreto”. E dividem de forma maniqueísta o mundo entre bons e maus. Nessa última característica reside o grande risco: teorias da conspiração costumam ser usadas por grupos políticos, como mostra a história, para perseguir o “outro”. No fundo, elas iludem ao apresentar um horizonte finito, embora amplo, além do qual a humanidade inevitavelmente vai cair num abismo e na desgraça.
Quem embarca na jornada em busca da verdade e do conhecimento genuíno, embora possa enfrentar tormentas, sabe que não é bem assim.
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