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“Topo ser babá, cozinheira, auxiliar de cozinha, faço de tudo um pouco”, leio em uma das tantas reportagens sobre como as pessoas irão se virar quando acabar o auxílio emergencial. É na semana que vem.
Dá para ter uma ideia do que vai acontecer. O economista Vinícius Botelho, da FGV, calcula que cerca de 7 milhões de pessoas caíram abaixo da linha de pobreza (R$ 5,50 por dia) com a redução do auxílio, e que o número deverá ir a perto de 17 milhões com o fim do benefício.
Alguns dirão que é de mau gosto pensar nessas coisas no dia do Natal. Ontem mesmo, quando rascunhava o artigo, comentei com alguém que me recriminou. “Tinha de falar de coisas mais positivas, celebrar a esperança.” Concordei, mas segui em frente. Fiquei até com a consciência meio pesada, mas não tem jeito. Sou colono, não consigo desligar.
O país ficou enredado em um debate sobre o desenho ideal de um programa de transferência de renda e as fontes para o seu financiamento. Nenhuma das duas discussões deu em nada
A situação é clara. Os infectologistas alertam que janeiro pode ser um mês trágico na pandemia, pelas razões sabidas. O fim do auxílio colocará lenha nessa fogueira. Mais pessoas irão em busca de trabalho, e o risco de contágio e morte aumentará. Em especial entre os mais pobres.
Na prática, vamos reforçar o que já vem ocorrendo. Relatório da Fiocruz mostrou como os bairros com alta concentração de favelas, no Rio de Janeiro, apresentam o dobro de letalidade dos bairros “sem favelas”. As razões são as de sempre (falta de diagnóstico e acesso aos serviços de saúde). O fim do auxílio irá agravar isso tudo.
Há aí um evidente risco político para o governo. A reprovação de Bolsonaro entre os mais pobres caiu de 44% para 27% entre junho e dezembro deste ano, segundo o Datafolha. Não é crível imaginar que isso irá se manter com o fim do auxílio e o agravamento da questão social em 2021. Se isso acontecer, não será surpresa. A responsabilidade primeira sobre esse processo é do Executivo, que nunca apresentou um plano de combate à pobreza ou transferência de renda consistente e nunca levou à frente um projeto de reforma estrutural do setor público capaz de financiar uma política social mais robusta.
Vale o mesmo para o Congresso. Há bons projetos sobre transferência de renda tramitando por lá que quase nada avançaram. O Senado aprovou uma LDO “mais do mesmo”, como lembrou Marcos Mendes, reforçando o espaço para as emendas parlamentares, e o ano legislativo terminou melancólico, deixando para 2021 qualquer medida de ajuste estrutural.
A verdade é que o país ficou enredado em um debate sobre o desenho ideal de um programa de transferência de renda e as fontes para o seu financiamento. Nenhuma das duas discussões deu em nada. Sobre seu custeio, uma das visões defendia a unificação de programas sociais como o abono salarial e o salário-família. Bolsonaro vetou com a ideia de que não era aceitável “tirar dos pobres para os paupérrimos”.
De outro lado, havia a tese de “retirar do andar de cima”. A coisa mais próxima disso teria sido avançar na PEC dos penduricalhos, do deputado Pedro Cunha Lima, e fazer valer na prática o teto remuneratório do setor público já inscrito na Constituição.
É temerário permitir que, em um quadro de desemprego crescente, retomada da pandemia e incerteza quanto à recuperação econômica, alguns milhões de brasileiros percam de um dia para o outro a única fonte de renda dos últimos meses
No fim do dia, a conta será paga pelos muito pobres, que não têm organicidade e peso nenhum no mundo político.
Vejo tudo isso como uma enorme irresponsabilidade. Não tenho ilusão de que o país irá eliminar a pobreza com programas de transferência de renda. Para fazer isso é preciso uma combinação bastante complexa de crescimento continuado, boa educação e instituições inclusivas. Mas é temerário permitir que, em um quadro de desemprego crescente, retomada da pandemia e incerteza quanto à recuperação econômica, alguns milhões de brasileiros (36% dos que receberam o auxílio, segundo o Datafolha) percam de um dia para o outro a única fonte de renda dos últimos meses.
Não quero ser estraga-prazeres, mas o melhor mesmo é cancelar o recesso parlamentar, votar o Orçamento de 2021, a PEC Emergencial e os ajustes necessários para viabilizar uma alternativa fiscalmente sustentável de renda mínima para o período difícil que temos à frente.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos