Bolsonaro dobra a aposta. Não se sabe exatamente baseado em que tipo de evidências, o presidente joga sua autoridade e o que lhe resta de credibilidade na tese de que a pandemia será passageira, no Brasil, e terá menos letalidade do que o quase-consenso da comunidade médica vem apontando.
O recente relatório apresentado pelo Imperial College, em Londres, aponta que, em um quadro em que nada de substancial for feito, a pandemia pode gerar mais de 2 milhões de mortes nos Estados Unidos e pouco mais de meio milhão na Inglaterra. O relatório fez com que o governo britânico adotasse decisões mais duras e incentivou a escalada de medidas de isolamento, no plano global. A Índia, com seu 1,3 bilhão de habitantes, entrou em lockdown nacional por 21 dias, tendo registrado apenas um quarto do número de mortes já identificadas no Brasil em função do Covid-19.
Há uma tendência global nesta direção. O The New York Times, em editorial, fez um apelo ao presidente Trump para que lidere uma reclusão americana por duas semanas, de forma a interromper a espiral de contágio e permitir medidas mais focalizadas, daí para diante.
É uma falsa dicotomia imaginar que exista uma contradição entre “salvar vidas” e “proteger a economia”
O mundo pode estar errado e Bolsonaro pode estar certo. Há uma vaga aposta na transmissão mais lenta, em climas quentes, e na ideia de que gente jovem e saudável dificilmente terá problemas, caso for contaminada. Isto é obviamente equivocado. Bolsonaro não tem base técnica para fazer este tipo de afirmação e não deveria fazê-lo.
Alguém pode chegar à Presidência da República seguindo sua intuição, andando na contramão e agindo de modo errático. Mas nada disso funciona para combater uma pandemia desta gravidade.
Não há qualquer dúvida de que medidas rápidas e duras de isolamento social são necessárias e já deveriam ter sido implementadas em larga escala no país. Afirmar isto não significa que se deve desconsiderar os impactos econômicos da crise. É uma falsa dicotomia, típica de nosso debate político polarizado, imaginar que exista uma contradição entre “salvar vidas” e “proteger a economia”.
Thomas Friedman lançou esta discussão em um artigo recente, sugerindo uma abordagem em três etapas: o isolamento total, a realização massiva de testes e mapeamento de riscos, por região e perfis populacionais, e (no prazo que for tecnicamente adequado) o retorno coordenado ao trabalho. Bastou apresentar estas ideias bastante óbvias para que fosse chamado de “darwinista social” e outros impropérios. Sua ideia mais elementar diz simplesmente que, respeitando-se a absoluta prioridade que se deve dar à preservação da vida, “o emprego e o estado geral da economia é também um tema de saúde pública”.
Se isto é verdade em uma economia como a americana, que vem de um ciclo de quase pleno emprego, o é ainda mais em um país como o Brasil, que ainda não se recuperou da brutal crise de 2015/2016, que levou (segundo dados do IBGE) mais de 4,5 milhões de pessoas a cruzarem – para baixo – a linha de miséria.
A pergunta óbvia: o que fazer se a taxa de desemprego no país aumentar em 50% e outros 4,5% de cidadãos somarem-se aos atuais 13,5 milhões de brasileiros em condição de miserabilidade? Que danos e quantas mortes isto irá produzir?
O que fazer se a taxa de desemprego no país aumentar em 50%?
É previsível que este tema não interesse e pareça mesmo irritante para a classe média alta que possui poupança ou se sente segura em seus empregos, em particular no setor público. E muito menos aos mais ricos, que irão desestressar em Miami, quando tudo passar. Consequências não intencionais da ação, na expressão há muito consagrada por Robert Merton, nunca parecem interessar para aqueles que não irão pagar a conta depois da tempestade.
A solução para a crise que vivemos começa quando nosso sistema político resolver desligar do “modo internet” e do clima de permanente campanha eleitoral em que se meteu. Ou então terminaremos como naquele filme de Pasolini, com sua estranha mistura de nonsense e divertimento sádico, em meio à tragédia.
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