Matthew Lyon era um deputado brigão. Protagonizou uma das primeiras pancadarias do Congresso americano, em 1798, com direito a cusparadas e nacos de lenha na cabeça do adversário. Tempos depois atacou o presidente John Adams de maneira sórdida e foi preso. No processo, foi definido como um tipo “sedicioso”, com a “mente depravada, perverso e diabólico”. Quem conta a história é David McCullough, em sua ótima biografia de John Adams.
O Congresso havia aprovado a “lei de sedição”, que basicamente punia ataques (logicamente acima de um certo “tom”) ao presidente Adams. Havia lógica na imposição da censura. A guerra com a França era iminente e havia uma oposição panfletária e violenta. Hoje tudo é lembrado como um momento obscuro da vida americana.
Independentemente da solução do caso de Daniel Silveira, o Brasil se encontra, mais uma vez, diante do debate sobre os limites da liberdade de expressão
Não sei se o deputado Silveira conhece a história de Matthew Lyon. Talvez ele seja um erudito disfarçado de lutador de jiu-jitsu, mas desconfio que não. Silveira também parece um tipo “cuspidor” e suas palavras, tidas (com razão) como perversas, golpistas e inaceitáveis.
Há algumas diferenças entre os dois. Lyon teve direito a um processo, defesa, essas coisas. E com uma lei aprovada no Congresso. Por aqui não temos nenhuma “lei de sedição” aprovada em lugar nenhum. Temos um inquérito aberto de ofício pelo Supremo. As alegações, porém, vão na mesma direção: atos de fala que desonram, geram risco às instituições e à segurança do Estado.
Se o deputado Silveira conhecesse Lyon, saberia que ele foi reeleito. É o único caso de um deputado americano eleito na prisão. Virou uma espécie de herói entre os inimigos de Adams. Quando vi aquele vídeo e aquela agressão absurda do deputado ao ministro Fachin, me deu a impressão de que ele também quer ser um herói. Herói do nada, mas reeleito no ano que vem.
Independentemente da solução desse caso, o Brasil se encontra, mais uma vez, diante do debate sobre os limites da liberdade de expressão. Alguém pode dizer que “imaginou” uma autoridade pública apanhando na rua? Pode ensinar a fazer coquetel molotov no Instagram? Dá para defender uma ditadura? Dá para escrever no jornal que a morte desta ou daquela autoridade seria uma boa para o país?
No fundo, é esse o debate que tangencia o inquérito das fake news. A Rede o contestou dizendo que a corte havia criado um “ferramental para intimidar livremente, como juiz e parte a um só tempo, todo aquele que ousar questionar a adequação moral dos atos de seus membros”. Depois mudou de opinião, o que sugere o seguinte: engana-se quem imagina existir grande apoio à liberdade de expressão, aqui nos trópicos. Antigovernistas comemoraram a prisão do desafeto com a mesma força que o fariam governistas na hipótese contrária. Não vejo o princípio abstrato capaz de deter a paixão política em nossas democracias polarizadas.
Daí o recurso à história. Tanto à época da “lei de sedição” como dois séculos depois, no Brasil, pessoas são presas por delito de opinião. E com boas razões. O ponto é que naqueles primeiros tempos da República americana havia um James Madison. E um Thomas Jefferson. E havia a Primeira Emenda da Constituição, que vedava a criação de leis restringindo a liberdade de expressão. O resultado foi um magnífico texto de Madison, o Virginia Report, de 1800, que iniciou a consolidação de uma cultura de respeito às liberdades consagrada por Oliver Holmes, em 1919, com a doutrina do “perigo claro e presente” para definir se um ato de fala deveria estar protegido pela Constituição.
Engana-se quem imagina existir grande apoio à liberdade de expressão, aqui nos trópicos
No Brasil não temos nada disso. Nem Madison, nem Holmes, nem a Primeira Emenda. Temos é um país que, três décadas e meia depois do fim da ditadura, se agarra à velha Lei de Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo, e que curiosamente vai se convertendo em estandarte democrático.
Talvez vá por aí o caminho brasileiro. Como me disse um amigo jurista, “teremos todos de andar na linha, e do lado certo”. Terminou me pedindo anonimato. “As coisas estão perigosas, professor, é preciso tomar cuidado.” E tudo me soou perfeitamente compreensível.