A estátua de Mahatma Gandhi amanheceu coberta por uma caixa metálica, dias atrás, em Londres. O monumento foi inaugurado em 2015 para homenagear o líder pacifista indiano, mas agora há uma campanha para retirá-lo de lá sob a acusação de racismo. Um dos colegas de praça de Gandhi é Jan Smuts, ex-primeiro-ministro segregacionista da África do Sul. Smuts também circula em uma lista de derrubamentos, mas tem merecido menos atenção. Churchill é o mais famoso da praça e já foi devidamente vandalizado.
A menção a Gandhi não vem por acaso. Valeria o mesmo para as diversas estátuas de Cristóvão Colombo queimadas ou decapitadas em cidades americanas, ou para o nosso padre António Vieira, gentilmente vandalizado no centro de Lisboa.
João Pereira Coutinho associou nosso tempo a uma certa revivescência medieval. A época pré-iluminista das inquisições. Diria que vivemos uma Idade Média mais bem educada. As multidões de hoje não se reúnem mais em praça pública para amaldiçoar algum infiel ardendo na fogueira.
As bruxas em geral queimam na internet e não importa muito a ideologia. Na vida real (ao menos por enquanto e com algumas tristes exceções), a multidão derruba apenas estátuas e vandaliza espaços públicos.
Coutinho estaria errado se a raiva popular estivesse sempre do lado certo da história. O antirracismo contemporâneo, por exemplo, na trilha de Martin Luther King. As multidões trariam consigo o germe da razão e do progresso moral. Saberiam escolher entre a civilização e o que deve ir para o lixo da história.
De minha parte sou cético. Se alguém quer entregar à multidão irada a decisão sobre proibir um filme, retirar a palavra a um orador ou derrubar uma estátua, boa sorte. Só lembre-se que um dia desses a multidão pode errar e sua fúria se voltar exatamente contra as ideias que mais prezamos. Não foram poucas vezes que isso aconteceu, e nem muito longe daqui.
É exatamente por isso que inventaram essa coisa quase insuportável chamada liberdade de expressão. Exatamente a coisa que está no centro do debate atual e que vem desafiando a nossa democracia.
Há um lado curioso nisso tudo. Nos anos 1990 muita gente imaginava que a internet iria aproximar as pessoas e melhorar o debate público. Ocorreu o contrário. Cresceu a paixão tribal no mundo do pensamento. Numa expressão, a tecnologia nos medievalizou. Os riscos disso tudo são evidentes. O mais óbvio é a perda de referência. A incapacidade de distinguir entre demandas legítimas de transformação social, como o antirracismo, e a simples intolerância.
Barack Obama acertou na mosca pedindo que os movimentos antirracistas que incendiaram os EUA não "racionalizassem" a violência. Mencionou uma velha senhora que teve a loja de rua destruída e disse que todos sabiam como aquilo tudo estava fadado a terminar.
E arrematou: "Se queremos a justiça e a sociedade funcionando sob um código ético mais exigente, precisamos nós mesmos agir desse modo". Obama é o cara que disse, um dia após a eleição de Trump, que a democracia era assim, um jogo de vitórias e derrotas em que todos ganham, no longo prazo. Mas pouca gente entendeu, como sempre.
Outro risco é a contaminação das instituições. Não há que se esperar muito da multidão digital. Por vezes ela irá acertar, por vezes errar, e mesmo sobre o erro e o acerto não haverá acordo. A paixão e o ódio político serão o feijão com arroz das democracias.
No Brasil atual me surpreende (em que pese não deveria) que tenhamos ressuscitado a "famigerada" Lei da Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo em 1983. Para alguns, a lei que era um entulho autoritário se transformou em instrumento da democracia; para outros, que com ela simpatizavam, se tornou ferramenta do arbítrio. Num e noutro caso, o apelo indignado à liberdade de expressão.
Não deixa de ser uma perfeita imagem do nosso tempo. Não vejo chance de essas coisas mudarem, e o máximo que me permito é acreditar que nossas instituições e liderança pública não irão embarcar nesse jogo. Acreditar com cada vez menos força, confesso.
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