João Pereira Coutinho fez uma pergunta estranha em seu artigo desta semana: por que salvar um jovem delinquente e abandonar um velho exemplar? A pergunta é provocativa, mas real, nestes tempos de pandemia. O debate é o seguinte: o que fazer quando as UTIs explodem de gente e há mais pessoas em situação crítica do que a capacidade de atendimento?
Foi o dilema vivido pela Itália, semanas atrás. Uma publicação do Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva criou um protocolo para lidar com o tema espinhoso. O conceito é simples: dado que os recursos são escassos, o foco é preservar quem tem “maior probabilidade de sobrevivência”. Como segunda opção, quem tem mais anos de vida pela frente, de forma a “maximizar benefícios para a maioria”. Logo me perguntei: quantos anos? 50 anos me parece OK; dez anos soa pouco relevante. Quem vai decidir essas coisas?
O protocolo é, por óbvio, utilitarista. Seus critérios chocam a partir de um olhar menos treinado. Um deles, em particular: estabelecer um limite de idade na entrada na UTI. Pessoas serão excluídas a priori. Me incomoda imensamente isso. Imaginei meu velho pai, se vivo fosse, aos 91, dando de cara na porta.
O Brasil precisa fazer qualquer coisa para evitar o drama vivido em hospitais italianos
Concorde-se ou não com este ou aquele critério, é melhor ter algum protocolo do que nenhum. O pior cenário é quando escolhas desse tipo são tomadas subjetivamente, no calor da hora.
Há quem vá mais longe nisso tudo. Peter Singer (nosso filósofo utilitarista-chefe) defende que a sociedade como um todo deve pensar não em vidas perdidas, mas em anos de vida perdidos. Ele menciona um estudo mostrando que a Itália perdeu em média “apenas” três anos de vida para cada morte registrada. Singer vai além: sugere que a melhor métrica seria calcular tudo em termos de “bem-estar”. Certo seria calcular o quanto perdemos, em termos de felicidade agregada, parando a economia por dois ou três meses, vis à vis o benefício de preservar um certo estoque de “anos de vida”, em geral destinados a pessoas muito idosas.
Singer acredita que os economistas facilmente fariam essa conta, colocando um preço na vida humana. Perguntei para um amigo economista, e ele concordou: “fazemos isso toda hora, a começar quando decidimos o orçamento público”.
De minha parte, desconfio de tudo isso. Sigo com o amigo Coutinho: “o problema do utilitarismo é que ele é assaz flexível”. Digo que é preciso propor algum critério mais objetivo para saber quando a contabilidade de vidas humanas é aceitável.
Joshua Greene sugere o seguinte: concordaríamos em sacrificar um e salvar quatro operários distraídos, no famoso dilema do bonde desgovernado. Com uma condição: cada um imaginando a si mesmo dentro do experimento. Seria ilógico não multiplicar por quatro a chance de sobreviver. O mesmo raciocínio deixa de funcionar quando o contexto é mais aberto. Alguém toparia viver em uma sociedade na qual pudesse ser sacrificado, a qualquer momento, para salvar três ou quatro pessoas?
Dinheiro não nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora do setor público, nem dos bilhões reservados para a campanha eleitoral
O utilitarismo é uma ética plausível em situações extremas, quando as opções em jogo são poucas e os critérios amplamente compartilhados. Mas é implausível na grande sociedade, onde a conta de maximização do bem-estar é exageradamente “flexível”, e todos demandamos, com razão, direitos iguais.
O país deveria pensar nisso quando ingressa na fase mais crítica da pandemia. Deveríamos fazer qualquer coisa para evitar que nossos profissionais de saúde tenham de fazer escolhas de vida e de morte entre cidadãos brasileiros, por falta de leitos e respiradores. Dinheiro não nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora do setor público, e nem mesmo os R$ 2 bilhões que nossos políticos reservaram para gastar na campanha eleitoral foram destinados à saúde. Seria uma estranha forma de contabilidade humana investir em panfletos o necessário para que nenhum de nossos velhos seja retirado de um ventilador, em um hospital qualquer deste país imenso e ingrato.
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