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Fernando Schüler

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Um espaço dedicado para debater o complexo cenário nacional atual

Meritocracia: que bicho é esse?

Não há como falar em meritocracia quanto ricos e pobres têm pontos de partida tão distantes, especialmente na educação. (Foto: Bigstock)

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Daniel Markovits lançou um livro chamado The Meritocracy Trap (“a armadilha da meritocracia”, ainda sem edição no Brasil), com as habituais denúncias contra o “mito” ou a “farsa” da meritocracia. O argumento central é um velho truísmo. Nossas sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e, por óbvio, os pontos de partida de cada um na vida são muito diferentes.

O interessante desse debate é que raramente alguém diz quem exatamente defende a ideia sem sentido de que nossas sociedades sejam meritocráticas. As referências sempre se dirigem a uma vaga “cultura popular” que preza o mérito, ou recomenda que as pessoas confiem nelas mesmas e ponham a mão na massa (a cultura da autoajuda é isso, não?).

Nos anos 1950, o sociólogo britânico Michael Young escreveu um livro distópico, The Rise of The Meritocracy (“a ascensão da meritocracia”, também sem edição no Brasil), tentando imaginar como funcionaria uma sociedade em que as posições de poder fossem acessíveis aos mais talentosos. A coisa toda era, por óbvio, uma grande ironia. E um inferno totalitário, apenas isso.

Nossas sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e, por óbvio, os pontos de partida de cada um na vida são muito diferentes

Há uma confusão elementar nisso tudo. Uma coisa é dizer que esforço e disciplina fazem diferença na vida, outra é imaginar que o mérito seja a base sobre a qual a sociedade distribua recursos e posições de poder. As organizações podem fazer isto, com base em critérios próprios, mas não a grande sociedade, onde os critérios são dispersos (ainda bem), e onde o acaso cumpre um papel essencial.

Hayek matou esta charada quando registrou que o mercado não remunera mérito e sim a criação de valor, segundo a “votação” que cada um faz, a cada momento, a partir de suas próprias preferências, quando decide ou não pagar por alguma coisa. E que a condição de nascimento, assim como uma “mente brilhante, uma bela voz, um rosto bonito ou mãos habilidosas (...) são tão independentes dos esforços de um indivíduo quanto as oportunidades ou experiências que já teve”. E que seria um inferno, em especial para os menos favorecidos, uma sociedade em que de fato se acreditasse na lorota de que uma boa renda é prova de mérito e uma má posição pressupõe sua ausência.

Em vez de perder tempo com moinhos de vento, deveríamos discutir com seriedade qual o parâmetro de justiça plausível em uma sociedade aberta. O melhor que conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais para todos e uma base equitativa de oportunidades para cada um. Isso nada tem a ver com igualdade de oportunidades, que implicaria a eliminação de tudo aquilo que possa servir de vantagem para alguém na ideia tola de que “a vida é uma corrida”.

O grande Bernard Williams tratou disso com primor. Igualar oportunidades implicaria eliminar a influência do dinheiro – e, logo, da comunidade, da língua e, por fim, da família e das aptidões naturais (e quem sabe também da sorte) – da vida das pessoas. A par de destruir qualquer traço de identidade pessoal, um exercício de nonsense.

Qual o parâmetro de justiça plausível em uma sociedade aberta? O melhor que conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais para todos e uma base equitativa de oportunidades para cada um

O que se deve efetivamente oferecer é uma base mais homogênea de oportunidades. Isso significa muitas coisas ligadas ao direito de crescer com saúde, ser tratado com a mesma consideração e respeito que os demais e poder escolher uma (boa) escola onde estudar (direito hoje concedido apenas aos mais ricos, sob aplausos gerais).

O professor Markovits diz que temos de abrir as escolas dos mais ricos para a frequência dos mais pobres. Ele está certíssimo. Sem colocar os alunos (com mais ou menos renda) a estudar nas mesmas escolas (e nem me refiro aqui às superescolas) não vai rolar base nenhuma de oportunidades iguais. Como fazer isso? Bolsas? Contratos de gestão com o setor privado? É isso que nosso velho corporativismo mais odeia, não é mesmo?

De qualquer forma, a ideia de que cabe ao Estado assegurar uma base mais equitativa de oportunidades a todos é algo que a tradição liberal há muito incorporou. E não penso que ela seja recusável por um pensamento de esquerda igualmente atual. Talvez vá aí a base de algum consenso público para além da querela política e sobre o qual o país tem boas razões para se concentrar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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