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Pesquisa Datafolha recente revelou que 56% dos brasileiros são contra o voto obrigatório. O tema é relevante e faz parte de um conjunto de reformas institucionais que o país precisa enfrentar, e é bom que seja discutido. O ministro Luís Roberto Barroso parece concordar com essa ideia, mas com ressalvas. Ele diz que nessas eleições começamos uma “transição” para o voto facultativo, com um porém: que ainda somos uma “democracia jovem” e tudo deve ficar para “um futuro próximo”. Quanto tempo ainda para amadurecermos? Sabe-se lá.
Pelé dizia coisa parecida nos anos 1970: “O povo não está preparado pra votar”. Cresci com essa frase na cabeça, que soava como uma verdade intransponível. Por alguma métrica que desconheço, as pessoas, inclusive um sujeito brilhante como o ministro Barroso, continuam acreditando que o povo não sabe votar, mesmo que um dia possa aprender.
Se não sabe, é lógico ter um “nudge”. Uma sanção leve, tipo uma palmadinha na bunda para a criança se comportar. No nosso caso, é a chatice de fazer o “requerimento de justificativa eleitoral”, bloquear documentos, pagar a multinha de R$ 3,51. Só uma palmadinha, até a gente amadurecer.
O que me incomoda é a reiterada ideia de que “não sabemos”. A crença difusa de que o cidadão comum é, de algum modo, um incapaz
O curioso é que já votamos 20 vezes desde a volta da democracia. Elegemos oito presidentes, fizemos uma Constituição, dois plebiscitos. Com um sistema de votação exemplar. Mas, por alguma razão, a frase de Pelé continua grudada na nossa cabeça.
Há quem diga que o assunto é irrelevante. Dias atrás alguém me deu este argumento: “Não precisamos nos preocupar com isso”, disse o sujeito, “o voto já é quase facultativo. Veja a abstenção nessas eleições”. Talvez ele tenha razão. Num país infestado de burocracia, qual é o problema em ter mais uma multinha? Alguns dizem que o mais importante são os riscos do fim da obrigatoriedade. E se só radicais forem votar? E se o comparecimento for baixo, minando a “qualidade da democracia”?
Argumentos difíceis. A maioria das democracias consolidadas na Europa adota o voto facultativo, enquanto a obrigatoriedade tende a ser padrão na América Latina. Difícil dizer que nosso modelo melhora a democracia. Há bons exemplos, também na direção oposta, como o da Austrália.
Quanto à legitimidade, daria muito pano pra manga. Na eleição de 1996, nos Estados Unidos, o comparecimento eleitoral foi de 49%. Nesta última, foi acima dos 66%. Biden terá mais legitimidade que Bill Clinton? O não comparecimento indicaria “recusa de consentimento” aos governos? Lembrei-me das lições de Norberto Bobbio, para quem a abstenção pode significar exatamente o contrário: a saúde do sistema ou uma “benévola indiferença” em relação aos candidatos.
Um bom argumento que escutei dizia que “a obrigatoriedade protege a todos”. Evitaria o coronelismo e o cabresto em um país que ainda se parece, em muitas regiões, com a República Velha. Não me perguntem como medir isso, ainda que o argumento tenha certo apelo.
De minha parte o incômodo é outro. É a reiterada ideia de que “não sabemos”. A crença difusa de que o cidadão comum é, de algum modo, um incapaz. Ela vem do fundo de nossa cultura autoritária. E de lugar nenhum, visto que ninguém até hoje inventou um “incapacitômetro” para medir o grau de maturidade dos cidadãos. Intuo que é a mesma crença que diz que os mais pobres não podem escolher a escola dos filhos, como aplicar o fundo de garantia e tantas outras coisas. Crença que está na base de nosso Estado paternalista. Nos últimos anos avançamos um pouco. Exemplo foi a decisão, meio que por milagre, de que os brasileiros podem decidir se querem ou não pagar o seu sindicato.
Mas a verdade é que a estrada é longa e o voto facultativo, para além de nos livrar do cartório, afirma um tipo de valor. O valor da autonomia dos cidadãos. A ideia de que as pessoas comuns podem aprender e tomar decisões por conta própria. E que, sempre que alguém com o poder de ditar as regras do jogo disser o contrário, devemos desconfiar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos