“Os cidadãos são racionais em sua visão das instituições políticas, atualizando sua avaliação em resposta ao que observam”, diz relatório recém-lançado da Universidade de Cambridge sobre a percepção da democracia. A confiança nas instituições declina porque os governos falharam em coisas como “a coordenação econômica na zona do euro” e na resposta mais efetiva à “mudança climática global”.
Fiquei em dúvida se os autores listavam alguns itens de suas próprias predileções políticas ou de fato imaginam que sejam estas as preocupações das pessoas e causa de sua crescente insatisfação com a política. Mas este não é o ponto. O ponto é que suas conclusões expressam bem o que os professores Christopher Achen e Larry Bartels chamam de teoria folk da democracia. Achen e Bartels discutem o tema em seu livro Democracia para Realistas. Seu alvo são as visões ingênuas que teimam em tratar a democracia como expressão dos “interesses” dos eleitores que talvez tenha florescido à sombra da famosa frase de Lincoln em Gettysburg.
Em vez de ajustar nossas opiniões à realidade, tendemos a ajustar a realidade a opiniões
A partir daí, sua crítica é devastadora. Eleitores, em primeiro lugar, detêm muito pouca informação relevante sobre temas políticos. Isso acontece porque o custo da informação é alto. Muita gente imaginou que a internet resolveria isso, com informação barata e abundante, mas tudo parece ter piorado pela raiva, pelo excesso, pelo tribalismo e essas coisas que todos sabemos.
O livro traz exemplos saborosos sobre como os eleitores de fato agem nas democracias. Um deles mostra como pequenas alterações nas palavras, ou na maneira como uma pergunta é feita, podem produzir uma enorme mudança na opinião das pessoas. Exemplos: uma pesquisa mostrou que perto de metade dos americanos achavam OK “não permitir” que um comunista pudesse discursar por aí, mas apenas um quarto concordava em “proibir” ele de falar. Outra mostrou dois terços dos eleitores, às vésperas da Guerra do Golfo, favoráveis ao uso da “força militar”, mas apenas 30% a favor de “ir à guerra”.
Traço comum é o que Keith Stanovich chama de “myside bias”. Em vez de ajustar opiniões diante da realidade, ajusta-se a realidade a opiniões. E regra do grupo ou “lado” político. É o feijão com arroz de nossas democracias. Exemplo disso tivemos no debate sobre a suposta privatização do SUS, na última semana. Bastava um clique na internet para saber que já há milhares de unidades de saúde gerenciadas pelo setor privado. Inclusive PPPs, desde o primeiro e bem-sucedido contrato feito pelo ex-governador Jaques Wagner, na Bahia.
Mesmo com informação e uma penca de bons estudos acadêmicos disponíveis, as pessoas prosseguiam “ajustando” sua narrativa. Promover estudos sobre as parcerias seria “inconstitucional” (!); tem a “pandemia” (!); tem coisa “por trás” (!) O que mesmo os estudos indicam? Isso pode melhorar a qualidade do atendimento? Sei lá, mas a gritaria está grande na internet.
É um tipo de negacionismo democrático, hoje banal e possivelmente sem cura. Ainda que todos pudessem ganhar com um debate público qualificado, não há incentivos para que cada um aja de acordo, isto é, pense com algum distanciamento e julgue programas públicos com responsabilidade.
Ainda que todos pudessem ganhar com um debate público qualificado, não há incentivos para que cada um aja de acordo
O professor James Fishkin, da Universidade Stanford, desenvolveu um modelo de democracia deliberativa para lidar com isso. Ele faz uma amostra da população e expõe as pessoas a um ambiente reflexivo, com argumentos a favor e contra, e incentivos para que todos ajam de modo sereno e responsável. Há alguns anos assisti a um de seus experimentos. De metade a dois terços das pessoas tendem a mudar sua visão ao longo do processo. Sua mudança (esta é a tese) reflete o que aconteceria com a grande sociedade, caso algo similar fosse possível. Obviamente não é.
O que nos leva a uma indagação perturbadora: nossas melhores esperanças democráticas funcionariam apenas em condições de laboratório? De certo modo, é a resposta de Fishkin. De minha parte, não tenho resposta. Sei apenas que daqui de fora, da selva, deveríamos pensar a respeito.