David Brooks escreveu algo curioso, dias atrás, sobre o impacto da crise na sociedade americana. “O que antes surgia como uma sociedade amarga e dividida agora se parece com uma nação de gente encontrando maneiras criativas de aproximarem uns dos outros.” O Brasil também vem se comportando como uma sociedade amarga e dividida e a pergunta a fazer é se a crise traz alguma mudança semelhante.
Ainda é cedo, mas não tenho dúvidas de que há sinais positivos. E eles vêm do universo da vida privada. Famílias que se reaproximam, redes invisíveis de solidariedade e pequenos gestos, infinitos grupos que dialogam via aplicativos que nem sequer conhecíamos. Cada um terá sua história para contar. Alguns terão perdido pessoas que amavam, outros terão passado por um isolamento difícil.
Há notícias incríveis, ainda aos pedaços, sobre o florescimento da filantropia. A Associação Brasileira de Captadores de Recursos registrava na terça-feira mais de R$ 1 bilhão em doações, e isto irá crescer. Há uma explosão no uso das plataformas de crowdfunding, novas experiências de matching, como a duplicação do recurso da alimentação escolar que chega aos alunos mais pobres de São Paulo, feita por empresários e pessoas que se reúnem na busca coletiva de recursos.
Sinais positivos vêm do universo da vida privada. Famílias que se reaproximam, redes invisíveis de solidariedade e pequenos gestos
O ponto é que há um divórcio entre o que se desenha no universo privado e o que corre solto na esfera pública. Nesse âmbito, parecemos ter regredido. A pandemia e seu drama parecem não ter funcionado para desarmar espíritos e produzir alguma coesão.
Nestes dias voltei a ler sobre as grandes pestes. Deparei-me com as histórias de terror no relato de Defoe sobre a peste de 1665, e logo a imagem de Carlo Ginzburg em seu História Noturna: “O trauma da peste faz crescer a busca do bode expiatório no qual atiramos nossos medos e ódios”.
O vaticínio de Ginzburg parece descrever com precisão o que se passa no debate público. Exemplos disso são a "conspiração chinesa" e a celeuma em torno do uso da cloroquina. Sobre esta última, é fácil perceber que há uma divisão da área médica. Há resultados promissores, colhidos “em meio à guerra”, como bem observou o dr. Paulo Zanotto, há pessoas morrendo e não dispomos de protocolos conclusivos a respeito. O que fazer? Ir atrás da informação, ter boa vontade em relação ao debate ainda desencontrado, escutar os médicos, verificar sobre os resultados que vêm, quase em tempo real, de quem está na frente de combate?
É o que de fato fazemos, no universo pessoal. No mundo público soltamos nossas bruxas. Pedimos o banimento das redes sociais de quem pensa diferente, quem sabe na falta de fogueiras a nossa disposição. Que os cidadãos façam essas coisas, opinando sem nenhuma responsabilidade, no mundo digital, é mais do que previsível. O que surpreende é nossa liderança política, em um momento difícil como este, seguir o mesmo compasso.
Tudo isso em um quadro no qual nem sequer sabemos o tamanho do drama humano que temos à frente. Pesquisa recente feita em Nova Délhi mostrou que, mesmo com medidas de distanciamento social, moradores de favelas são 44% mais vulneráveis à contaminação pela influenza. É só um indicativo, no qual devemos prestar atenção. E agir rápido.
No mais, volto à provocação de Brooks. Ele conta sobre o grande silêncio americano ao fim da gripe espanhola. “Talvez porque as pessoas não gostaram de ver no que haviam se transformado”, naqueles momentos duros. A crise é assim. Mostra o nosso pior e o nosso melhor. A vantagem, por aqui, é que cada um ainda tem tempo de fazer as suas escolhas.
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