Fake news não é crime, no Brasil. Me surpreendi com a quantidade de pessoas escrevendo, em relação ao inquérito conduzido pelo Supremo, coisas do tipo "então pode sair mentindo por aí?". De um ministro do Supremo escutei que era preciso separar fatos de opiniões.
A preocupação das pessoas em relação a essas coisas é perfeitamente legítima. O mesmo vale para o discurso de ódio.
Não foram poucas as pessoas que li dizendo coisas do tipo "então vale ofender, atacar instituições, dizer qualquer coisa?". É crime um deputado dizer, como consta do despacho do ministro Alexandre de Moraes, que o Supremo tem "atacado o Estado de Direito e a vontade popular"?
Seria crime, na mesma linha, associar o governo ao "nazismo" e dizer que o grupo que está no poder deseja implantar uma "abjeta ditadura militar"?
Essas perguntas incomodam porque mexem com a paixão política, um tipo de mal contra o qual, depois de um bom tempo lendo sobre política, desconheço remédio eficaz.
No caso da acusação feita pelo decano do Supremo, sugeri um exercício filosófico bastante simples: imaginar a mesma frase em sentido invertido. O presidente dizendo uma coisa dessas sobre a Suprema Corte ou algum de seus ministros. Como as pessoas reagiriam?
O exercício é um tipo de "véu da ignorância", em que se define a regra do jogo sem saber a posição que cada um ocupa no próprio jogo. Ele é filosoficamente interessante, mas em geral inútil no mundo da política, onde a graça é brincar de ser o dono da verdade.
São essas coisas que incomodam no projeto que tramita no Congresso, disciplinando o tema das fake news. E que talvez tenham levado ao recuo na votação que ocorreria no Senado nesta semana.
O projeto define "desinformação" como algo "inequivocamente falso" ou posto "fora de contexto". Quando li isto me pus a fazer perguntas. "A Previdência é deficitária?", perguntei a dois interlocutores. Um deles riu e disse que era um fato evidente. O outro lembrou que uma comissão do Senado havia chegado a conclusão oposta.
A lei sugere que situações como esta nos levariam a recorrer às "agências verificadoras de fatos independentes". E completa: "com ênfase nos fatos". Seriam quase como ministros do Supremo definindo o que é ou não uma ofensa. Elas nos diriam o que é ou não um fato.
Li que seria preciso evitar a escolha de agentes incapazes ou maliciosos como verificadores. De fato seria preciso ser exigente se o que desejamos é sair da caverna e suas sombras para a luz do dia.
O que mais me chamou a atenção foi a ideia da informação "fora de contexto". A internet é como Ireneo Funes, o personagem de Borges que nada esquecia. Uma massa caótica de frases e imagens que sempre que se põe a mão já se deslocou e se encontra, irremediavelmente, fora de seu contexto.
De minha parte, acharia sensacional ter à mão um punhado de maquininhas da verdade para acionar e colocar um carimbo de falso ou fora de contexto em cada bobagem que se diz nas redes sociais.
Não duvido que as pessoas que desejam essas coisas o façam na melhor das intenções. Mas desconfio que a malícia não esteja nesta ou naquela agência, mas no espírito dos homens. E mais: que a paixão política terminará por arrastar tudo outra vez, definindo a quem cada um prestará atenção.
O ponto é que ainda não conseguimos definir exatamente o que é crime e o que queremos punir na internet. Fake news em escala industrial? Uso de contas anônimas? Impulsionamento massivo com o uso de robôs?
Ou nada disso, no fundo, é muito relevante, visto que as redes são empresas privadas, cada um pode escolher cair fora e todos podemos aprender, com o tempo e por conta própria, a separar o joio do trigo?
Não tenho esta resposta, mas intuo que a falta de clareza sobre o que é crime e o que é direito à expressão pode nos conduzir, seja neste inquérito, seja na formulação apressada de leis no Congresso, facilmente a fragilizar direitos que não deveríamos relativizar.
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