Ainda me lembro da conversa com Zygmunt Bauman, junto com o amigo Mário Mazzilli, em sua velha casa de Leeds, na Inglaterra, alguns anos atrás. Os tempos eram outros, havia certo otimismo com a recuperação da crise, e o velho professor nos lembrou da dicotomia posta por Freud, em O Mal-Estar na Civilização, entre liberdade e segurança. Nunca se descobriu o equilíbrio perfeito entre os dois valores, disse ele, acrescentando desconfiar que o pêndulo havia girado em demasia na direção da liberdade. E que logo as pessoas demandariam (e já haviam sinais) mais segurança.
O momento parece ter chegado, professor Bauman, em circunstâncias que ninguém poderia prever ou desejar.
Demandas por segurança implicam, em graus variados, o apelo ao Estado. É natural. O Estado está aí para nos proteger precisamente em situações como a que vivemos. O risco é percebermos, no fim do dia, que novamente deixamos o pêndulo flutuar demais, dessa vez para o lado contrário.
Diria que o maior risco vem da retórica do novo conservadorismo iliberal. O apelo à quebra dos valores liberais, do direito de ir e vir à liberdade de expressão. Tudo parece perder um pouco do sentido diante do medo. Medo do vizinho no elevador, da perda do emprego, da morte. O medo hobbesiano. Foi isso que levou Adrian Vermeule, o jurista iliberal de Harvard, a fazer seu mais duro ataque ao liberalismo, em artigo recente, pregando entregar poder ao Estado sob o manto de um “legalismo iliberal que vá muito além do conservadorismo tradicional” e sua submissão às regras do Estado de Direito.
Demandas por segurança implicam, em graus variados, o apelo ao Estado. É natural
O avanço de ideias como as de Vermeule seria a pior consequência da crise. O pluralismo é uma marca de nossas sociedades abertas. A ideia de um Estado-príncipe regrando a vida a partir de uma concepção moral é uma tese pré-moderna, e seria fatal com o uso de tecnologias de controle digital hoje disponíveis.
A outra vertente fala da migração de uma era de “consenso neoliberal” para a reconstrução do Welfare State. A tese soa elegante, mas é feita de meias-verdades. O dito consenso neoliberal jamais foi propriamente um consenso, e o Welfare State de fato nunca saiu de cena. A última década, pós-crise de 2008, assistiu à ascensão de líderes de traço autoritário e populista (Orbán e Trump são apenas dois exemplos). É um erro situá-los em um consenso liberal.
Não se deve confundir um momento dramático, como o atual, com tendências sociais mais de longo prazo. Intuo que a questão sobre “mais Estado” logo será substituída por uma pergunta mais racional: de que tipo de Estado estamos mesmo falando? Não sei dar uma resposta ampla a esta pergunta, mas arrisco algumas ideias.
A primeira distingue o que são demandas legítimas por proteção e boa regulação daquilo que é essencialmente captura do Estado por setores organizados, no mercado político. Vale para nossos modelos de renúncia fiscal. Vale para o modelo aprovado nesta semana de apoio a estados e municípios, sem contrapartidas. A segunda reconhece que funções tradicionalmente desempenhadas pelo Estado podem ser executadas pelo mercado e sociedade civil. Da gestão de hospitais, no Brasil, a programas de transferência de renda, no Quênia. Tamanho não define a eficiência do Estado. Por fim, a superação da falsa oposição entre rigor fiscal e políticas sociais. Foi a irresponsabilidade fiscal o principal fator que nos levou aos 12% de desempregados com os quais entramos na pandemia.
O desafio é evitar velhos equívocos, como a oposição ingênua entre Estado e mercado, liberdade e justiça. A experiência moderna vai na direção inversa. O liberalismo foi domesticado e incorporou uma extensa agenda social, e a moderna social-democracia fez o mesmo com políticas de responsabilidade fiscal e reforma do Estado.
A crise oferece o tempo de repensar. Tempo de mexer no pêndulo e quem sabe chegar mais perto da Golden Rule imaginada pelo velho professor entre aqueles dois valores, que no fundo definem muito de nossa condição humana.