| Foto: Carolina Antunes/PR
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Não faço ideia se Regina Duarte finalmente irá aceitar o convite para dirigir a área cultural do governo. Imagino que sim. Dada à confusão reinante, é como comprar ações na baixa. Ninguém parece esperar muito da gestão cultural na era Bolsonaro, e é aí que ela tem uma oportunidade.

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A tragicomédia de Roberto Alvim trouxe lições importantes. A reação democrática da sociedade e dos chefes de poderes, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre à frente, foi rápida e eficiente. Mas o aprendizado não termina por aí.

Penso que aquela encenação absurda nasce de um erro que nenhum governo republicano deveria cometer: a ideia de que cabe ao Estado tutelar as escolhas culturais a serem feitas pela sociedade. A noção de que, sendo este um governo conservador, teria legitimidade para impor à sociedade um padrão cultural e estético conservador (seja isto o que for). Sobre isso deve versar, na minha modesta opinião, a conversa definitiva de Regina Duarte com Bolsonaro antes de entrar na igreja para este casamento.

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Gestão pública não é lugar para guerra cultural. Estamos em 2020 e é triste ter de lembrar dessas coisas

Sugiro a ela perguntar o seguinte: o governo vai abrir mão dessa ideia sem nexo de financiar filmes da “nossa tradição judaico-cristã”? Vai abrir mão de meter a colher no tipo de arte e nos valores expressos nesta ou naquela exposição de arte ou desenho animado? Se essas coisas não ficarem claras, digo que o melhor que Regina Duarte tem a fazer é largar o noivo à beira do altar.

Disputar ideias de direita ou esquerda, liberais ou conservadoras, na sociedade, é perfeitamente legítimo e desejável em uma democracia. O que não se pode é fazer isso por meio do Estado. Sendo direto: gestão pública não é lugar para guerra cultural. Estamos em 2020 e é triste ter de lembrar dessas coisas. Elas deveriam estar na cabeça de todos. Mas infelizmente não estão, e não me refiro apenas a membros do atual governo.

Se Regina Duarte quiser uma boa fonte de inspiração para o caminho a seguir, não precisa ir muito longe. Ela está na própria história do Ministério da Cultura. Ainda me lembro do embaixador Sérgio Paulo Rouanet, no início dos anos 90, quando formulava a lei que levaria seu nome. Sua ideia era criar um modelo liberal de financiamento. Um mecanismo neutro em relação às escolhas estéticas das pessoas. Diria que ele conseguiu fazer isso.

Não entro aqui no debate sobre a possibilidade de uma ação imparcial do Estado na cultura. Ao focar na preservação de patrimônio ou apoiar culturas tradicionais, o governo está realizando escolhas, mas não é disso que estou tratando aqui. O ponto é a renúncia da escolha estética. Renúncia da ideologia. Renúncia em definir uma identidade nacional. Somos um país de múltiplas identidades, e elas se reconstroem continuamente.

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Ronald Dworkin desenvolveu esse argumento com elegância, dizendo que o compromisso de um Estado liberal é promover a “riqueza estrutural da vida cultural”. Cada geração teria o compromisso de entregar à seguinte um mundo mais rico em escolhas de valor, mais diverso e complexo.

O governo vai abrir mão dessa ideia sem nexo de financiar filmes da “nossa tradição judaico-cristã”?

A gestão cultural anglo-saxônica, com seus conselhos de arte, incentivos fiscais e grandes instituições independentes, expressa bem essa ideia. Certa vez perguntei a um dirigente cultural americano qual era a lógica daquela estrutura tão diferente dos nossos ministérios e secretarias de Cultura, e ele me respondeu: queremos administrar essas coisas por meio de braços longos, onde a política não alcança.

Tenho até hoje essa definição na cabeça. Se eu pudesse dar um conselho a Regina Duarte, daria este: comande com braços longos, longe da política e sua imensa conversa fiada. Observe o modelo de gestão de instituições como a Osesp ou o Museu do Amanhã. Preste atenção à recém-aprovada lei dos endowments, e como ela pode ser implementada. Favoreça o critério técnico e a oferta de meios, deixando que fins sejam definidos livremente pela sociedade. No fundo, é isso que se espera de um governo liberal-conservador. Fidelidade à ideia simples de que as escolhas culturais pertencem às pessoas, não ao governo. Do contrário, teremos apenas vezo autoritário. Coisa inviável em uma democracia vibrante como a brasileira, que já anda cansada de confusão.